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A palavra quintal evoca a ideia de algo diminuto. Um espaço cristalizado na memória da moradia brasileira, próprio da nossa cultura, apesar de sua longínqua gênese romana. Essa pequena parcela de terreno, muitas vezes aliada à presença de um jardim ou horta, tornou-se parte essencial das mais variadas residências, fruto da adaptação da moradia rural e da atividade agrícola.
Limiar entre o público e o privado, entre o interior e o exterior, entre o rural e o urbano, o quintal é muito mais que um espaço físico. Esse pequeno território entre a morada e o mundo é uma potente imagem do cotidiano e de suas coisas mais ordinárias. É no quintal que germinam nossos sonhos, onde brotam as pequenas iniciativas, onde as mais variadas atividades rompem com a rigidez do dia a dia.
Seu maior encanto é ser, ao mesmo tempo, refúgio e abertura: um avesso da rua que, mesmo protegido dos olhos alheios, é um espaço de entrega a céu aberto. É nele que pés e mãos se conectam com o chão de terra batida, e onde sol, chuva e vento tocam a pele sem mediação. O quintal, ponto de encontro entre o terreno e o etéreo, é o lugar onde segredos e pedidos são cochichados às estrelas, e onde os cenários futuros mais inusitados ganham forma em nossas mentes.
Tal qual um gabinete de curiosidades, o quintal resulta de um apanhado de memórias. Nele habitam as quinquilharias, onde a bicicleta cúmplice de aventuras convive com as bacias de quarar as roupas, e as peças íntimas dispostas no varal dialogam silenciosamente com as hortaliças e floreiras. Entre os objetos guardados, acumulando poeira e afeto, e as evidências de momentos singelos, o quintal transforma-se no local da contemplação e da dilatação do tempo. Por sua vocação e arranjo, ele nos convida a nos demorar diante do que é ínfimo ou trivial.
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A mostra “Meu quintal é maior que o mundo” faz referência a um verso de Manoel de Barros, publicado no poema “O Apanhador de Desperdícios". Em uma época na qual os olhos raramente se detêm no entorno, o escritor nos convida a suspender a marcha e a nos debruçar sobre o que parece insignificante. Para edificar seu quintal, Barros elege cuidadosamente cada tartaruga, pedra e inseto, criando um lugar onde convivem imaginação, memória e realidade.
A operação poética de Barros estabelece afinidades profundas entre a prática do ateliê e o cultivo do quintal. No quintal que cada artista conforma, o tempo insurge-se contra a urgência que devora os dias. Com frequência, o artista acolhe o que permanece à margem e confere protagonismo a seres e coisas inesperadas.
A exposição coletiva apresentada agora na Casa Triângulo explora o quintal como objeto e conceito e reúne artistas de diferentes gerações. Seu propósito é exibir distintas acepções de quintal por intermédio de quatro núcleos principais de obras.
Por meio desse conjunto de trabalhos, a mostra revela o quintal como um território onde o banal encontra o sublime, onde o presente dialoga com memórias e possibilidades futuras. Aqui, as miudezas ganham voz, e o tempo parece dobrar-se sobre si mesmo. Na convivência entre o íntimo e o coletivo, os quintais desses artistas transmutam a matéria do mundo, abrindo frestas que nos permitem vislumbrar o extraordinário naquilo que até então era invisível.
Priscyla Gomes -
Com trabalhos de
Albano Afonso, Amorí, Ana Paula Sirino, Andy Villela, David Almeida, Diego Mouro, Eduardo Berliner, Fernanda Galvão, Heitor Dos Prazeres, Leticia Lopes, Lucas Simões, Luiza Gottschalk, Marina Hachem, Mauricio Adinolfi, Mauricio Parra, Mauro Restiffe, Paula Scavazzini, Rafael Chavez, Sandra Cinto, Vânia Mignone, Yohana Oizumi, Zé Carlos Garcia AND Zé Tepedino.
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(1) Do chão de terra batida à infinitude do universo explora a amplitude de escalas implicadas na ideia de quintal. Trabalhos transitam entre o solo, como matéria viva que nos enraíza nesse espaço tão íntimo, e o cosmos, que nos permite perceber as mudanças do clima, a passagem do tempo e vislumbrar o porvir.
A escala nesses trabalhos não é somente um partido - como no caso de pinturas e fotografias em grandes formatos –, mas também uma problemática. Como demonstrado pela ciência por meio de suas imagens mais icônicas, ao contemplarmos e registrarmos algo de muito perto ou de muito longe, somos muitas vezes confundidos pelo que provém do microscópico ou do satélite.
O conjunto explora a imensidão das águas e dos corpos celestes, bem como extratos de solos e matéria orgânica que dão origem a vidas. Os quintais de Albano Afonso, Eduardo Berliner, Sandra Cinto e Maurício Adinolfi nos instigam pela capacidade de abarcar a vastidão, fazendo dela algo próprio, como se fosse possível guardar um lago, o mar e até mesmo as estrelas em seus bolsos.
Marina Hachem, Fernanda Galvão, Lucas Simões e Zé Tepedino exploram tensionamentos entre o matérico e o ficcional. Em alguns trabalhos, a manipulação escultórica dos elementos e a escala empregada formam uma potente e concisa síntese.
A multiplicidade de elementos nas vastas paisagens de Fernanda Galvão e Luiza Gottschalk sugere um dinamismo pulsante entre espécies e estados, que nos permite elaborar horizontes utópicos e distópicos. Imergir nessas paisagens deixa-nos à mercê das vicissitudes de um amanhã desconhecido. -
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(2) Do meu quintal abre-se uma moldura para a paisagem reúne artistas para os quais o exercício de observação pormenorizada do entorno revela aspectos peculiares do objeto de retratação e introjeta, na própria fatura pictórica, especificidades no tratamento de mangueiras, colinas e cercas em madeira. As faturas de David Almeida, Diego Mouro, Mauricio Parra e Paula Scavazzini refletem um diálogo constante com o que é observado.
O meticuloso e, por vezes, obsessivo ato de contemplação de alguns desses artistas desvela seu rigor na preparação e escolha dos pigmentos. Almeida e Parra, são exemplos paradigmáticos, no qual diferentes registros da paisagem regional brasileira convivem no hiato entre o olhar e a mão. Muitas dessas obras valem-se do uso de fragmentos de madeira coletada como suporte, do emprego do bolo armênio como superfície e da elaboração de pigmentos naturais.
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(3) O quintal como território de prosas e encontros propõe uma reflexão sobre o prosaico e as vivências compartilhadas. Trata-se de um espaço de convívio, de rotina familiar, de celebração e de contato com a espiritualidade que aglutina artistas como Mauro Restiffe, Ana Paula Sirino, Diego Mouro, Heitor dos Prazeres e Yohana Oizumi.
Sinônimo de terreiro nas religiões de matrizes africanas, o quintal torna-se o lugar sagrado da oferenda, da gira e do transe.
O samba, representado nas obras de Heitor dos Prazeres, aparece como uma expressão festiva típica desses locais, com seu poder de aglutinar as pessoas, sua singularidade musical e sua afirmação do papel do povo negro na vida urbana brasileira. Eternizado nas rodas de fundo de quintal, o samba segue sendo um momento catártico e comunitário.
Nessas obras, o quintal expande-se, de uma experiência individual e contemplativa para um ambiente em que partilhamos histórias, lendas, fazeres e danças, vendo o dia amanhecer em samba.
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(4) Do meu quintal, os mais remotos sonhos apresenta trabalhos que exploram o onírico e o surreal, evidenciando o caráter de refúgio deste local. Aqui, não se trata estritamente do quintal como espaço físico, mas de uma metáfora do psíquico, que nos convida a fabular sobre paisagens, afetos e realidades possíveis.
Os artistas que integram esse núcleo buscam materializar o indiscernível, conectar o ilógico, evidenciar o que permanece oculto ou encoberto. Os corpos híbridos das esculturas de Zé Carlos Garcia aliam o saber vernacular à elaborada combinação de formas de animais, frutas, vegetais e ovos. Por meio da pintura, Andy Vilella, Amorí e Rafael Chavez constroem suas paisagens repletas de simbolismos; e Vânia Mignone e Letícia Lopes abrem fendas para a interioridade.
Marcados pela incompletude do mundo, os artistas da mostra encontram nas lacunas da existência o impulso para a criação. É no devaneio e na quimera que suas poéticas ganham força. Mergulhando no íntimo, resgatam memórias e transformam experiências em matéria-prima para sua produção. Seus quintais expandem-se, alcançando os recônditos mais profundos do ser. -
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