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Casa Triângulo tem o prazer de apresentar Algaravia, primeira exposição individual de Andy Villela na galeria, com textos críticos de Carollina Lauriano, Clarissa Diniz, Lucas Albuquerque, Lorraine Mendes e Victor Gorgulho.
O conceito por trás da exposição Algaravia reside na própria síntese da palavra: um tumulto de vozes, mistura de várias palavras ou simplesmente a um idioma estrangeiro incompreensível. A ideia é que façamos um retorno ao debate da arte em que se debruce principalmente no produto artístico que existe independente dos aspectos psicobiográficos do autor - o que não significa ignorar toda construção narrativa do percurso do artista, tanto no mercado quanto em seu meio social. Ao propor que comentem sobre o trabalho de forma autônoma, procura-se mostrar a experiência guardada dentro da obra, que nos atrai justamente na suas imperfeições e contradições, mas que na verdade se confirma como tal apenas no âmbito da linguagem. A experiência é onde nos aproximamos enquanto humanos e é na palavra que tentamos decodificar o que não tem corpo.Como curadores e pesquisadores, o trabalho que produzem é fundamental para melhor disseminação cultural das produções artísticas e a palavra é a ferramenta primária que utilizam, todavia existe uma ambiguidade no poder da linguagem, que expande ou limita um assunto, um acontecimento ou mesmo um artista. A arte é justamente o lugar onde não só é possível como é esperado que tenhamos múltiplas perspectivas que nos afastem de uma ideia fixa, do que já está configurado. Que tenhamos coragem de estar num estado de criação inaugural e imaginação radical formando uma algaravia de sons que ressoem o nosso tempo e espaço. -
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A poesia abandona a ciência à sua própria sorte é o meu subtítulo imaginário para Algaravia (2024). Saqueado do livro de fotomontagens Pintura em pânico (1943), de Jorge de Lima, o – talvez profético – verso me serve de lente para olhar através da mais recente pintura de Andy Villela.
Ainda que constituída por signos de filiações gnósticas como céus, balanças, estrelas, sóis, luas, esqueletos, raios e portais, a cacofônica verborragia da obra não me permite enxergá-la como uma alegoria celebratória do saber. Ao contrário, sugere a ideia de uma ciência órfã de sentido – essa que, de tão arrogante e narcisista, pôs até a teimosa e resistente poesia pra correr. Restou, assim, como algaravia.
É por isso curioso saber que o tríptico tem, como referência, justamente a concatenadíssima alegoria As virtudes e os vícios (1306), pintada por Giotto di Bondone na Cappella degli Scrovegni (Pádua, Itália). Com as duas obras em mente, o que notamos é o programático esforço de Villela em desfazer a rígida e assertiva organização moral, social, teológica e estética da obra do famoso pré-renascentista que, como outros de seu tempo, ensaiava a fundação do que hoje, tantos séculos depois, ainda tomamos por “pensamento científico”.
Em perturbação a essa ordem, o gesto de Andy parece seguir o “conselho” que, atribuído ao poeta Rimbaud, foi citado por Murilo Mendes na “Nota liminar” do já aludido livro de Jorge de Lima: “desarticular os elementos”. “Em última análise, essa desarticulação dos elementos resulta em articulação”, explicava Mendes ao delinear as operações surrealistas que, precisamente por seu espírito entrópico, “permitem e facilitam o encontro do mito com o cotidiano, do universal com o particular.”
A disjunção perpetrada por Villela a partir da regulada-e-reguladora pintura de Giotto foi, portanto, a de separar, fraturar e remontar seus elementos que, de tão desarticulados, terminaram por se transmutar. Se em Algaravia já não é possível tomar por inteligíveis as vozes do antigo afresco, por outro lado faz-se ainda audível o seu díptico arranjo de contornos simétricos. Oriunda do binarismo do ajuizamento virtudes/vícios, a despeito de estar arruinada, a memória dessa alegórica dicotomia de algum modo sobreviveu ao desmantelo da artista e, na forma enunciados ruidosos e babélicos, insiste como um melódico vestígio de algo que lá havia.
Quiçá era ela, a ciência. Essa que a poesia, em reverência à sorte ou por sabedoria, teve que – ao menos na Algaravia de Andy Villela – abandonar.
Clarissa Diniz
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“(...) Só há libertação de Babel pela algaravia”
– Maria Filomena Molder, em Babel, Arabesco e Algaravia
De origem incerta, a citação em latim “quod me nutrit me destruit” (trad. O que me nutri também me destrói), flutua solene na parte superior da composição de Algaravia, produzida pela artista carioca Andy Villela. Defendida por alguns pesquisadores como uma variação de um outro mote, mais antigo, cujas célebres remissões podem ser encontradas nos escritos do poeta e historiador Samuel Daniel ou nos sonetos do dramaturgo William Shakespeare, ambos ingleses.
SIMÔNIDES – E o quarto?
TAÍSA – Esse uma tocha incandescente
Traz, invertida, e embaixo esta sentença:
“Quod me alit me extinguit”.
SIMÔNIDES – Assim mostra os extremos da beleza,
Que lhe dá vida e o mata com fereza.
(SHAKESPEARE, 1611, Ato II, cena II)
Fazendo eco à interpretação de Simônides, mas despindo-se de uma pretensão ingênua ao belo, Villela concebe um tríptico para refletir sobre os contrastes e meandros de sua produção. A jovem artista, cujo interesse acerca das possibilidades pictóricas motivam a sua produção, concebeu Algaravia como uma experimentação de diferentes técnicas e gêneros, sobre os quais a tela costura imagens fragmentárias. Assim se originam tais cenas opacas, construídas na dissolução de sua própria fatura pictórica, pontuados em sua presença por uma instabilidade reinante que impossibilita a fixidez da composição em um único estilo.
A tela esquerda, de tons mais claros, é construída mediante uma atenção maior ao fragmento. Ancorada pela releitura das alegorias oriundas do conjunto de afrescos As Virtudes e os Vícios (1304-1306) de Giotto, tais figuras se camuflam em camadas de tinta que, quando não as sobrepõem parcialmente, retardam a sua formação retiniana pela proximidade de cor com o seu entorno. Nesse sentido, a primeira tela que compõe o tríptico carrega um conjunto de elementos que refletem sobre a condição humana na história da arte ocidental. Sua recuperação se dá, contudo, mediante o arruinamento de sua função em uma construção visual lacunar, tornando tais figuras menos instrumentos de reflexão moral e mais exercícios de composição.
Predomina nas duas telas direitas, em contraste, a presença de formas mais demarcadas em paleta de maior saturação. De tom sóbrio, o segundo ato de Algaravia parece ecoar, tomando como reflexão o caráter sonoro de seu nome, os meandros graves e soturnos de sua composição. Entre representações cognoscíveis e seres fluidos, a relação de figura e fundo se torna demarcada pelo uso ostensivo de cores sólidas. Aqui, mesmo o silêncio encontra lugar, como na cena inferior esquerda, cuja coloração e tema lembram as pinturas da fase taciturna de Edward Hopper, ou, ainda, na extremidade oposta, em que a face-sem-boca sugere uma interpretação sintética das figuras geométricas de Ismael Nery. O serpentear de padronagens recortam e costuram as três telas, ora enquadrando os limites do suporte, ora interligando as cenas.
Partindo da “linguagem bizarra, ininteligível” em que o termo algaravia é descrito pelo Petit Larousse, a artista carioca desloca o aspecto pejorativo da palavra, comumente endereçado a um estrangeiro que não se adequa à linguagem comum, no anseio de adereçar o estranho como aquele que habita o seu próprio fazer. Num mergulho corajoso à dissonância, Villela segue na contramão de um cenário que preza pela ordenação e categorização da prática artística e parte em defesa da multiplicidade. No decorrer de sua caminhada, é possível – e provável – que determinadas práticas aqui expostas se consolidem, mas é de se admirar que tal cristalização não pressuponha a inibição da experimentação em detrimento de um estilo. Algaravia é a expressão máxima de Villela neste caminho.
Lucas Albuquerque
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