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Ao longo dos anos, Nino Cais (São Paulo, 1969) vem depurando pacientemente o sentido escultórico de sua produção poética. A exposição que nos guia pelo signo “Clarão” contempla de modo muito evidente a força expressiva do corpo - nossa forma de presença aos olhos do mundo. Fiel aos objetos do cotidiano, ao seu repertório íntimo e formativo (que passa pela semântica católica e familiar), o artista nos entrega um conjunto consistente de trabalhos, agregando símbolos, utensílios, palavras, equilíbrios, desenhos e composições. Por isso, ele nos deixa perceber que a condição política da arte é inerente a quaisquer gestos artísticos. São gestos contaminados, nem sempre manuais, que implicam a efeméride da presença e de sua memória.
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Portanto, três balizas principais parecem definir a atuação artística de Nino Cais: a evocação de uma base de afetos e memórias que constituem sua história, o apreço continuado pela força intuitiva da criação e um olhar depurado e amplificado da linguagem escultórica - tanto a partir de uma tradição da história da arte brasileira como da exploração experimental de seus sentidos por meio de outras mídias e suportes. É desse colchão conceitual e triangular que o artista nos aponta um sentido de direção, um norte-guia de sua percepção crítica do fazer artístico.
Cais entende a arte como um ofício, uma elaboração cotidiana da vida que demanda tempo, rotina e prática. Não é que a reflexão esteja ausente. É justamente ela o elã simbólico e abstrato que costura sua produção, a qual seja na excelência da composição gráfica, material, objetual ou performativa. Há, portanto, em sua atuação, um forte sentido de presença, em que o próprio artista se percebe constantemente implicado. Suas apropriações e assemblages - práxis indissociáveis de seu corpo de trabalhos - são consequências diretas de sua vontade de presença e evocação na arte.
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Ironicamente, seria algo análogo ao próprio gesto artístico; aquele que emana de um mito criador. Veja bem: não quero dizer que o artista é adepto dessa ideia. Entretanto, Cais possui uma aguda percepção de como a arte ocidental foi profundamente impregnada pelos valores cristãos narrados na saga bíblica. Em nossas longas conversas, ele pontou muito bem a lembrança da ressureição de Cristo: fato que foi imediatamente precedido por uma iluminação que cega, antes da recorporificação do próprio filho de Deus crucificado.
Ao mesmo tempo que cega momentaneamente, o clarão é também sinal de abertura e transformação: qualidade intrínseca à arte. Ter clareza no que se pensa enquanto intenção criativa permite ao artista dar imagem e/ou forma aos seus trabalhos. Em Nino Cais, tal clareza pode ser exemplificada pelo objeto cadeira que é transladado para a valoração de um ready-made. Portanto, doze delas em madeira, diferentes em suas formas, são suspensas e amarradas por camisas brancas e recebem sobre os seus assentos uma pilha de pratos brancos.
As cadeiras encontradas em lojas de segunda mão, os pratos comprados em armazéns de utensílios de casa e as camisas brancas estruturam as peças escultóricas que compõem sua Santa Ceia (2023). E, entre dois grupos de seis (uma alusão objetiva aos 12 apóstolos bíblicos), há a presença do espelho que reproduz constantemente a imagem de quem se posta diante da instalação. É a reprodução do outro, daquele que partilha o espaço da existência, que reverbera pelo espelhamento na sala expositiva. Se há uma instrução escolástica na poética de Nino Cais, há também uma filiação “duchampiana”, perceptível pela revaloração aguda e permanente do conceito de ready-made, elemento presente na história da arte desde a segunda década do século XX.
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Podemos dizer que Cais evoca as operações dadas que trabalham os objetos ordinários e seriados do cotidiano, especialmente a noção de ready-made assistido; para o próprio Marcel Duchamp, aquele objeto apropriado que sofre alguma alteração ou intervenção pela prática do artista[2]. E depois de tal procedimento, o artista caminha então para um segundo momento descrito como assemblage: uma rica recombinação de materiais e objetos impregnam sua obra de inúmeros sentidos. Basta ver a peça escultórica em que uma pá - símbolo maior do labor - é vestida por uma camisa, cujas mangas estão preenchidas pela farinha de trigo. Esta escultura, denominada Escavador (2023), é referência direta à litografia de Van Gogh que ilustra o homem simples e trabalhador do campo.
Também, o trabalho Sebastião (2023) traz a mesma dinâmica compositiva: três peças escultóricas apoiada em parede compostas por três arpões de pesca e três camisas distintas: uma branca, uma preta e uma vermelha. Nelas, em um gesto de maior violência, a noção de presença é mais incisiva, apontando e abrindo caminhos. A ferramenta, a arma e os utensílios domésticos têm seus sentidos de uso e referência submetidos ao jogo semântico da arte. De certo, é nessa prática secular - do ready-made gerador à assemblage compositiva - que está o enigma e o refinamento das operações artísticas de Nino Cais: um exercício operacional permanente de desvelamento sútil de nossa presença em vida.
[2] Em sua publicação mais recente, o crítico de arte norte-americano Hal Foster requalifica este conceito duchampiano para comentar as operações de apropriação mais recentes do campo da arte. Tal observação começa pela menção a prática artística de Jeff Koons e de uma tradição herdada do pop. Guardando as diferenças, a reacomodação desses objetos ordinários apropriados pela arte é um gesto político que Nino Cais também comunga. É uma espécie de resposta à plutocracia que define a condução do mercado de arte, ancorado também em valores cristãos. Para um aprofundamento da questão, ler: FOSTER, Hal. O que vem depois da farsa? São Paulo: Ubu Editora, 2021. p. 65 - 69.
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Próximo à essa instalação, temos um grande círculo definido pela presença de mais um tanto de pratos, esses preenchidos por pós que são os mais variados alimentos e temperos encontrados na terra brasileira. A compactação dessa matéria nos pratos, onde é gravado em seu topo o contorno do território brasileiro (assim como o conhecemos na representação geográfica), traz à superfície a noção política de lugar. Esse grande círculo, à maneira da Roda dos Prazeres (1968) de Lygia Pape, cria condições para um ambiente ritualístico que comunga a formulação de nosso corpo social. Esse é, portanto, o epicentro da exposição e recebe intencionalmente o nome de Querência (2023). O termo “querência” aqui aplicado é referência possível aos seus dois significados mais conhecidos: o lugar do pasto e, por instinto, o habitat natural do gado, ou o lugar de origem e referência de uma pessoa, seja por nascimento, cria ou hábito. Há, portanto, na intenção do trabalho, um profundo desejo de vínculo com a terra em seu sentido de origem e fim.
A partir das obras concebidas pela presença do prato fundo, o artista representa e triangula três conceitos/signos distintos que são caros a ele: corpo, território e Brasil. Eles constroem, em última instância, uma forma e uma ideia de origem. Isto posto, nessa reunião de trabalhos aparentemente tão distintos, só que muito próximos do repertório e da vivência de Nino Cais, ele nos convida à uma ação quádrupla: lembrar e reconstruir, clarear e corporificar.
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