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ANTONIO HENRIQUE AMARAL É UMA VOZ SINGULAR NA ARTE BRASILEIRA E LATINO-AMERICANA DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX. NASCIDO EM 1935, ELE FAZ PARTE DA GERAÇÃO QUE ALCANÇOU SUA MATURIDADE SOB O ARBÍTRIO AUTORITÁRIO DO REGIME MILITAR IMPLANTADO NO BRASIL EM 1964, TENDO PRODUZIDO ALGUMAS DAS MAIS AGUÇADAS ALEGORIAS DESSE PERÍODO VISCERAL, SUA OBRA ENFRENTOU COM A MESMA INTENSIDADE A VIOLÊNCIA POLÍTICA, O MAL-ESTAR EXISTENCIAL E O DESEJO ERÓTICO. EXPERIMENTAL, DESAFIOU LUGARES COMUNS SOBRE COMPOSIÇÃO CROMÁTICA, TRATAMENTO DE SUPERFÍCIES E COESÃO ESTILÍSTICA. O CRUZAMENTO ENTRE SUA ATITUDE VISCERAL E SUA OUSADIA EXPERIMENTAL FAZ DELE NÃO APENAS UM CRIADOR QUE DEVE TER RECONHECIDO SEU LUGAR NA HISTÓRIA DA ARTE BRASILEIRA E LATINO-AMERICANA, MAS TAMBÉM UM ARTISTA INFLUENTE PARA AS JOVENS GERAÇÕES QUE DESAFIAM NORMATIVIDADES E AUTORITARISMOS.
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NESSES EXPERIMENTOS, O ARTISTA DAVA POUCO INDÍCIOS DE ESTAR ESPECIALMENTE PREOCUPADO COM OS DEBATES ACALORADOS QUE SE FAZIAM A SEU REDOR ENTRE AS VERTENTES ABSTRATAS CONSTRUTIVAS E O LASTRO SOCIAL LEGADO PELO MODERNISMO. MESMO SEUS DESENHOS DA ÉPOCA OSCILAM LIVREMENTE ENTRE A FIGURAÇÃO E A ABSTRAÇÃO, MANTENDO A INSTABILIDADE FORMAL E A INQUIETAÇÃO VISUAL COMO CONSTANTES. O ARTISTA PARECE COMPROMETIDO EM ENCONTRAR TRADUÇÕES PARA A ANGÚSTIA E DEMONSTRA INTERESSE PELO INDIZÍVEL, PELO ESTRANHO, PELO DESEJANTE E PELO INOMINÁVEL.
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Devido à consistência de sua produção, Amaral foi rapidamente introduzido à cena brasileira, realizando uma primeira exposição individual, composta por gravuras, no MAM-SP em 1958. Ainda no mesmo ano, viajou com seus trabalhos para expor no Chile e acabou convidado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) para expor na Pan American Union (Washington, D.C.) em 1959, conseguindo uma bolsa da Ingram Merrill Foundation para o Pratt Graphic Art Center (Nova York, NY). Nesse curto intervalo de tempo, consolidou sua predisposição em manter amplo trânsito internacional, especialmente entre as Américas do Sul e do Norte.
Foi assim – intensa e internacional – sua atuação no começo da década de 1960. Talvez tenha sido nesse período, conforme os seres inomináveis que figuravam em suas obras passavam a formar o princípio de um bestiário, que Antonio Henrique Amaral ganhou os traços que fizeram com que ele muitas vezes fosse associado aos termos “realismo mágico” e “realismo fantástico”, que são comuns no debate da literatura latino-americana do século XX. O nexo dessa associação está na disposição do artista a extrapolar o naturalismo da representação e evocar seres e situações imaginários. Como em todo o realismo fantástico, porém, tais extrapolações muitas vezes aumentam o efeito de verossimilhança ao invés de diminuí-lo – especialmente quando a realidade em si parece difícil de apreender.
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O desafio da apreensão do real impôs-se a Amaral no ano de 1964. Com o golpe civil-militar que interrompeu a = frágil democracia brasileira, os campos que possuíam potencial de transformação social progressista mais iminente – educação, reforma agrária, organização partidária – foram violentamente reprimidos, cabendo à produção cultural absorver o papel de veículo da crítica social ao autoritarismo crescente. O afunilamento das práticas políticas tradicionais somou-se ainda à vitalidade iconoclasta da juventude contracultural da década de 1960, o que provocou o fortalecimento da ideia de “opinião”, palavra que, não por acaso, foi adotada na época como título para shows, companhia de teatro, feira cultural, exposições de arte, e até jornal.
Antonio Henrique Amaral, que desde cedo tomara o desenvolvimento técnico e material de sua produção como um processo que visa multiplicar os conflitos internos em suas obras, respondeu então ao chamado ético que mobilizou grande parte de sua geração: emitir suas opiniões críticas para afrontar o regime militar e sua propaganda ideológica.
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Para tanto, ele tinha em mãos uma ótima linguagem para a expressividade espontânea de críticas, sátiras e provocações. A xilogravura pode ser feita com agilidade, é reprodutível e está associada a práticas que transbordavam o repertório da arte moderna. Como se buscasse sublinhar tal vocação da gravura, Amaral começou a observar as xilogravuras que ilustram os folhetos de cordel na tradição popular do Nordeste brasileiro e assimilou alguns de seus traços típicos. Afastou-se das simbologias existenciais, deixou seu traço mais seco, sintetizou seu tratamento de hachuras, e tornou seus personagens reconhecíveis como alegorias da vida política e cotidiana no país. Sem temer a utilização de símbolos de leitura imediata, ele tentou ir diretamente ao âmago das contradições de seu tempo.
O álbum O Meu e o Seu (1967) foi tratado por Antonio Henrique Amaral como uma obra de síntese de todo seu desenvolvimento em xilogravura. Suas gravuras policromáticas oferecem alegorias da vida contemporânea no Brasil, refletindo sobre impasses comunicacionais, sentimentos de isolamento e ações autoritárias. Nelas, há cabeças agigantadas, militares de duas faces, massas esmagadas, sujeitos isolados e bocas, muitas bocas escancaradas com os dentes visíveis e a língua agitada. São alegorias da incomunicabilidade, onde todos falam, ninguém escuta.
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EMBORA NÃO TENHA PARTICIPADO DA MOSTRA NOVA OBJETIVIDADE BRASILEIRA (MAM-RIO, 1967), A PRODUÇÃO DE ANTONIO HENRIQUE AMARAL TEM PONTOS DE CONTATO RELEVANTES COM OS DEBATES SOBRE A NOVA OBJETIVIDADE BRASILEIRA E SEU OBJETIVO DE COMUNICAR "PENSAMENTOS VIVOS", COMO DIZIA HÉLIO OITICICA. DENTRE AS MUITAS VOZES QUE SE FIZERAM OUVIR NO BRASIL DAS DÉCADAS DE 1960 E 1970, A DE AMARAL ESTÁ ENTRE AS MAIS ÁCIDAS E VISCERAIS. NÃO SE TRATAVA APENAS DE APONTAR VILÕES - ALGO FÁCIL DE FAZER NAQUELA ÉPOCA, ASSIM COMO HOJE -, MAS DE DAR FORMA À NÁUSEA PROVOCADA PELA INJUSTIÇA E PELO ESGARÇAMENTO DO TECIDO SOCIAL. AS BOCAS MUITO ABERTAS FEITAS PELO ARTISTA FALAM DEMAIS E NADA OUVEM. ELAS BERRAM, MANDAM E COSPEM PERDIGOTOS ENQUANTO SEUS PORTADORES SE TORNAM MAIS E MAIS DISFUNCIONAIS. ENTRE AS LÍNGUAS, BANANAS, GARFOS, BESTAS E GENERAIS DE AMARAL HÁ UM CONSTANTE FLERTE COM O GROTESCO QUE TALVEZ SEJA O ASPECTO MAIS PREGNANTE DE SUA OBRA QUANDO VISTA HOJE.
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O compromisso de Amaral de encontrar formas impactantes e multifacetadas para veicular posições críticas sobre os rumos do país manteve-se mesmo quando a receptividade para tanto se tornou mais violenta. O ano de 1968 foi de ápice e ruptura para a produção contracultural que então se estendia do teatro à música, passando pelo teatro, pela poesia e pelas artes visuais. Em reação às movimentações crescentes da sociedade, o regime militar ampliou suas práticas de censura e, com a promulgação do AI-5 em dezembro de 1968, assumiu seu caráter ditatorial suspendendo o direito à expressão de opiniões políticas. Nesse período, Amaral ensaiava mudanças em sua escala e dinâmica de atuação. Dedicava-se sistematicamente à pintura, uma linguagem com que não tinha ainda familiaridade. Inicialmente, levou a ela o mesmo universo simbólico que reunira nas gravuras, o qual se tornava mais frenético e abjeto com as cores e linhas do seu pintar experimental. No final da década de 1960, embora ainda jovem, ele já era reconhecido como um gravador excepcional, enquanto a pintura lhe oferecia desafios totalmente novos. Nos primeiros anos de dedicação integral à pintura, Amaral transplantou muitos dos temas de sua xilogravura para telas de pequeno e médio formatos, explorando novas cores e gestualidades. Rapidamente, esse exercício resultou em imagens inquietantes, abertas a múltiplas interpretações.
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Se as primeiras representações de bananas haviam aparecido na pintura de Antonio Henrique Amaral de modo gráfico e esquemático – similar à abordagem com que ele pintara bocas, insígnias e bandeiras –, logo o artista as utilizou como modelos para um pintar mais vagaroso e realista. Utilizando fotografias e sucessivos esboços, ele estudava enquadramentos, composições, sombreamentos e mesmo detalhes das manchas das cascas e da viscosidade do interior das bananas. A observação direta dos frutos, estendida e reenquadrada pela fotografia ou pelo desenho, era o seu ponto de partida das pinturas. Definiam-se assim formas e arranjos, enquanto cabia à fatura da pintura acrescentar e simplificar elementos, ao sabor do trabalho pictórico e da possibilidade de desver ou entrever as bananas, passando a enxergá-las como sucessivos ritmos de cores e manchas. Simultaneamente a essa aproximação tátil e visual, houve uma expansão semântica na relação do artista com essas frutas quando ele decidiu abordar o contexto brasileiro que se seguiu ao AI-5 e tomou-as como dublês das vítimas de violência arbitrária do Estado, substituindo imageticamente os corpos de jovens torturados e executados pelo governo.
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A principal síntese desse processo se deu na série Campo de Batalha, produzida entre 1973 e 1974 em Nova York. As laboriosas pinturas dessa série têm grandes dimensões e especial apuro no tratamento das texturas e dos efeitos de sombreamento, os quais dão qualidade sinestésica a múltiplas situações de corte, amarração e perfuração de bananas maduras por garfos e cordas. São, ao mesmo tempo, evocações da violência e experimentos sensoriais pictóricos que por vezes chegam ao limite do erótico.
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Foi também na Nova York da década de 1970 que Amaral debateu-se mais diretamente com sua identidade. O contraste com os artistas norte-americanos e os diálogos que ele encontrava com mais facilidade deixavam claro que ele seria sempre entendido como artista brasileiro e/ou latino-americano, mas também lhe alertava sobre a importância de almejar valores e sentidos que transbordassem a referência geopolítica de sua origem. Sua saída para esse impasse parece ter sido o diálogo. Dentre as muitas cartas que o artista guardou destaca-se a conversa franca e intensa registrada na sua correspondência com Ferreira Gullar. O poeta e crítico havia escrito sobre a obra de Antonio Henrique Amaral em outras ocasiões e viveu um violento processo de exílios sucessivos (na Rússia, no Chile, no Peru e na Argentina), durante o qual seguiu uma conversa com Amaral sobre os rumos e as faltas de rumo do continente sul-americano. Reflexões sobre forma e política, cotidiano e resistência marcam essa troca, dando lastro para que Amaral tenha decidido seguir respondendo sobre a realidade política e social do seu país, mas sem deixar de vislumbrar a possibilidade de que sua obra ganhasse leituras mais amplas, ou extemporâneas.
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Há um diálogo que Amaral relembrou diversas vezes, no qual ele mostrou sua produção para sua parente um pouco distante Tarsila do Amaral, que já em idade avançada lhe disse algo como: “Interessante, muito interessante você estudar pintura através da banana”. Ele concordava com essa consideração, pois entendia que seu trabalho tinha preocupações (e obsessões) que iam além do desejo de manifestar opiniões e responder a contextos políticos. De fato, conforme a ditadura militar caminhava para a reinstauração gradual – e até hoje incompleta – das bases democráticas constitucionais, Amaral deu vazão a outros aspectos de suas angústias existenciais e sua luxúria pictórica.
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A partir de finais da década de 1970, a produção de Antonio Henrique Amaral deixou de ter a alegoria como modelo simbólico predominante. Ainda sobrou espaço para metáforas e simbolismos, como em sua adesão às denúncias ao brutal desmatamento das florestas brasileiras, mas a postura do artista pendeu para a construção de cenas oníricas e para o encadeamento de cores e ritmos abstratos. Foi nesse momento que o desenho, que sempre foi para ele seu processo criativo mais flexível e abrangente, redobrou sua importância.
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Nesses exercícios de imaginação, o artista ganhou oportunidade para levar seu manuseio de sombreamentos e relações de claro-escuro até o paroxismo. Ele pode, também, explorar raras combinações cromáticas, em paletas por vezes tão vibrantes e diversificadas que remetem às mais coloridas obras de Tarsila.
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Observando o conjunto da obra de Antonio Henrique Amaral é plausível pensá-la como um bestiário expandido no tempo e no espaço: uma sucessão de formas e figuras que desafiam a identificação do humano e sua capacidade de comunicação, ou, de modo complementar, uma paisagem de objetos inanimados que ele impregna de identificação empática. Ainda há muito para descobrir e debater em seu trabalho, nesse momento em que por toda parte se procuram exemplos de obras capazes de resistir tanto aos projetos autoritários em exercício quanto às normatividades que restringem o entendimento do que seja o desejo, a sexualidade e a comunicação.
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COMO RESPOSTA AO GOLPE MILITAR OCORRIDO NO BRASIL EM 1964, AMARAL PASSOU A DESENVOLVER UMA OBRA DE CUNHO EXPLICITAMENTE POLÍTICO E TEOR SATÍRICO, INCLUINDO ELEMENTOS DA CULTURA POPULAR E DE MASSAS, NO QUE SE DESTACA SEU ÁLBUM DE XILOGRAVURAS O MEU E O SEU (1967), ENTÃO APRESENTADO NO MIRANTE DAS ARTES (SÃO PAULO), GALERIA EM QUE ERA SÓCIO PIETRO MARIA BARDI. O PERÍODO TAMBÉM MARCOU O INÍCIO DE SEU TRABALHO EM PINTURA, TENDO REALIZADO ENTRE 1968 E 1975 SUA EMBLEMÁTICA SEQUÊNCIA DE TELAS QUE PROBLEMATIZAM O MOTIVO DA BANANA COMO SÍMBOLO NACIONAL. NO SALÃO DE ARTE MODERNA DO RIO DE JANEIRO DE 1971, RECEBEU O PRÊMIO DE VIAGEM AO EXTERIOR E SEGUIU PARA NOVA YORK, DE ONDE RETORNOU EM 1981. OUTRO DESTAQUE DE SUA TRAJETÓRIA É O PAINEL SÃO PAULO – BRASIL: CRIAÇÃO, EXPANSÃO E DESENVOLVIMENTO (1989), INSTALADO NO SAGUÃO PRINCIPAL DO PALÁCIO DOS BANDEIRANTES, SEDE DO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, RESULTADO DE SUA PREMIAÇÃO EM CONCURSO.
No decorrer de mais de seis décadas de trajetória artística, Amaral apresentou seu trabalho em diversas individuais e coletivas tanto no Brasil quanto em países da América Latina, América do Norte, Europa e Asia.
Suas obras integram diversas coleções públicas importantes no país e no exterior, como: The Metropolitan Museum of Art (The MET), Nova York, NY, EUA; Blanton Museum of Art, Austin, Texas, EUA; Art Museum of the Americas (AMA), Washington, D.C., EUA; Casa de las Américas, Havana, Cuba; Instituto de Arte Latinoamericano (IAL), Santiago, Chile; Latin American Art Collection, Essex University, Essex, Inglaterra; Museo de Arte Americano de Maldonado (MAM), Maldonado, Uruguai; Museo de Arte Moderno de México (MAMM), Cidade do México, México; Colleccion FEMSA, Monterrey, México; Museo de Arte Moderno de Bogotá (MAMBO), Bogotá, Colômbia; Museo Nacional de Arte (MNA), La Paz, Bolívia; Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), São Paulo; Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), São Paulo; Museu de Arte de São Paulo (MASP), São Paulo; Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), Rio de Janeiro e Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo.
Seu trabalho tem sido extensamente discutido por críticos e curadores brasileiros e internacionais, como Paulo Miyada, Aracy Amaral, Jacqueline Barnitz, Damián Bayón, Sheila Leirner, Geraldo Ferraz, Vilém Flusser, Benjamin Forgey, Shifra Goldman, Ferreira Gullar, Casimiro Xavier de Mendonça, Maria Alice Milliet, Frederico Morais, Roberto Pontual, Bélgica Rodríguez e Edward J. Sullivan.