Marcia Xavier: Geologia Doméstica: Casa Triângulo, São Paulo, Brazil

Obras
Apresentação

Se eu fosse um fungo eu diria cale-se para sempre, se eu fosse um musgo diria que foi legal, feliz, alguém nasceu, conjuga o verbo, nasci, nascerei, nascera, nasceria, e pus uma pedra, poria, você viu aquela imagem borrada, tem uma marquinha, se eu fosse uma pedra eu diria isto aqui. Valeu. Um álbum de fotografias incríveis, aconteceu uma coisa com ele, olhando de longe parece uma galáxia, uma poça suja, uma gozada no meio da página. Se eu fosse uma página eu dizia que sim. Se eu fosse um borrão eu dizia que não. Você viu, meu véu virou velho, um amarelo uma pele, minha pele, uma anja novinha no meio da cara, minha cara, não eu,  a sua, não ela, não sei o que é, é uma luz que bateu, uma lua morreu, morreria. Me salva. Salvareis. Salvaríamos. Uma luz viajou desde o sol, varreu as estátuas, varou as cortinas e chegou ao meu único dia, o melhor dos meus dias, o dia entre todos os dias em que um anjo aprendeu quem ele é – sou eu ou serei, serás, seria, mas não aqui, não a luz, não a minha cara, não o corpo do que me antecedeu, conjuga o verbo, antecedi, antepassei, antepassarei, como um antepassado antecipa, e ponho uma pedra. Este dia aqui. Te fiz, que foi, fui eu?, perdi, perdeu, achei, ou melhor: morri e tudo morreu junto, foi bem assim, sob o súbito estar debaixo, coberta por mil túneis e toda uma vida inseta que há ao pé de cada página e de cada pedra. Ou seja, o peso mesmo, a ave presa, pobrezinha, de que servem suas asas, ao chão de uma gruta. Entra aí, bem aí, entramos, entrarei, entrastes, entrardes, entrei. Penetra a gaveta. Viu? Na próxima, traga besouros e tangerinas. Tenho sede. Traga seus próprios cabelos. Seja a fonte das minhas brotoejas, as sardas novinhas, estrelas da pele. Minha pele. Traga minha pele, da próxima vez. Me conte notícias. Não mostre fotos, mostre fatos, fontes, filhos. Eu serei uma úmida. Estarei feito bicho.  Estaríamos. Cantarei uma réplica, cantaria, transformando, repito, tanto amor em química.

 

Aqui estivemos. Nossos rastros. Aqui estivestes. Conjuga, conjuga. Estaremos. Estiverdes. Estão. Estou. Estás. Estaríeis. Conjuga mais. Está. Está agora. Nós duas. Estamos. Como duas pedras fincadas no mapa de uma mancha de mofo. Ouve. É o som de uma fonte. Será, seria, e vem de dentro da gruta. É o som de uma foto. A voz de um armário arrastado. Alguém cantando na cozinha. Conjuga. Voz, vazão, vozeirão. Cantei, cantarei. Conjuga mais. Eu canto. Tu cantas. Se eu fosse um fungo eu cantava. Um grão tomando o papel, rasgando o raio que bate no véu depois de viajar seis minutos desde a estrela solar e atravessar a atmosfera superior, rebater nas cumulus nimbus, ignorar trovões e refratar nas paredes caiadas lá de casa, vazando enfim uma telha – tudo isso, o longo milagre de uma viagem estelar, para imprimir um corpo. Meu corpo. Conjuga. Corpo, infinitivo torpor.

 

Foi assim: subi no telhado num dia lindo. Pus um espelho debaixo de mim e deitei sobre ele com muito cuidado. Esperei. Esperava. Espero ainda. O dia não nasceu, a lua não havia, uma nuvem não passou, nenhum pássaro cantou. Cantaria. Ninguém disse nada. Eu não acordei nem dormi, nem palavra. Foi assim: abri meus olhos mas não eram olhos o que eu tinha para abrir, ergui meus braços mas não havia nada para abraçar. Eu beijei uma nuvem mas não havia nuvem. Eu plantei uma árvore mas não havia árvore. Eu liguei a tv e nenhum programa passou. Passei. Passado. Passaria. Eu estava sozinha mas cheia de gente. Gritei um bezerro, pedi por socorro, inteiro e bem alto, mas nenhum salva-vidas me salvou. Salvaria. Apenas o espelho debaixo de mim ficava opaco, ganhava espessura, história, textura, movimento. Às vezes até alegria. O ar entrava dentro dele. Talvez respirasse um pouquinho. Um dia levantou e saiu por aí.

 

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Nos trabalhos de Marcia Xavier há quase sempre flutuação entre corpo e imagem. Nos recentes, alguma coisa acontece quando uma imagem apodrece – feita de, cede à matéria, às bactérias, aos fungos. O papel fotográfico não é espelho nem azulejo, não é o mapa de um fundo neutro, não é o mar calmo onde um homem anda. Não cabe em seu propósito explícito – carregar uma imagem e sumir debaixo dela. Imagem, madona contemporânea, veja, um musgo te tomou. Agora és também um queijo. Uma textura. Um labirinto de grãos.

 

Na série “Geologia Doméstica”, que dá nome à exposição, e que ocupa as paredes da galeria (há duas outras séries, conectadas a ela: “Santa” e “Fotogramas”), o altar do álbum de casamento dos pais torna-se fonte de mortíferas sempre-vivas. A foto em perspectiva da cerimônia é tomada pela “vista aérea” (utilizada, por sinal, para espionagem e bombardeios), chapada, de uma invasão fúngica. Sobre esta imagem plana, involuntária, que a umidade criou sozinha, Marcia sobrepõe uma segunda imagem plana: uma pedra, melhor, um pedregulho real, posto sobre a imagem original, e refotografado do alto. Assim, a umidade fúngica, a solidez geológica e a cena ideal do casamento dos pais se roçam, contíguos, metonímicos, equivalentes uns aos outros, numa “geologia da moral” que percorre todo o trabalho.

 

A memória individual, incomensurável, da filha retecendo sua própria origem no poço sem fundo do casamento dos pais, roça uma borda neutra e plana. É contra o sistema  perspectivo dessa cena de origem (o álbum de casamento, a memória como lembrança encadeada, organizada numa cerimônia e num ponto de fuga) que a planaridade do fungo e da pedra se impõem. Esta dupla planaridade é o escândalo e a sacanagem destes trabalhos. Em sua imobilidade, simplesmente por estar lá, confundindo-se com a invasão bacteriana da umidade, a pedra ganha a força de um meteoro. É tão diferente e absurda, e ao mesmo tempo tão parecida, com a cena cerimonial, que a memória, para citar um livro famoso, ganha matéria (o branco-e-preto do álbum original facilita essa operação). Mas, ao fazer isso, é como se fosse corroída por ela, entregando-se a seu oposto. Não a perpetuação, mas o desastre; não a cerimônia, mas o acidente; não a memória, mas o caos.

 

Creio que há grande carga de destruição nesta série de trabalhos, acentuada ainda mais pela falta de escala dos pedregulhos. São gigantes? Mínimos? Escarpas? Cabem em nossa palma? Essa desmesura transfere para as fotos do álbum algo como a revelação de seu truque, de sua cultura de foto. Pois o ponto de fuga é essa mesma desmesura às avessas, escalonando e hierarquizando cada elemento. A construção da distância, com suas leis e conquistas renascentistas, o código perspectivo que as fotos do álbum reiteram, mais os véus e os sorrisos, os vestidos e os penteados, tudo parece problematizado pela falta de escala das pedras – são igualmente imensos? Igualmente mínimos? Pertencem ao todo ou aos detalhes?

 

Esta questão espacial se transfere ainda ao tempo, com toda naturalidade. Quão antigo é cada elemento? Qual a origem do quê, aqui? Primeiro as fotos do álbum, depois o fungo, depois a pedra sobreposta, certo? Mas não sabemos que é exatamente o contrário – primeiro a pedra, depois o fungo (a vida bacteriana), depois o homem (a cerimônia, a cultura etc)? E ainda, o que dizer da voracidade fúngica? Ok, como metáfora da passagem do tempo, da idade, ela logo se acalma. Todos nos acostumamos com isso. A naftalina, o amarelecido das fotos, o mofado das roupas, o borrado do retrato, são ícones edulcorados de ruína, uma melancolia de fim-de-tarde. No entanto, parecem aqui parte dos grãos, como se a foto fosse ela mesma um composto bacteriano que ainda estivesse se revelando. O processo ainda está ocorrendo – por semelhança, a umidade foi transformada nessa estranha química, que revela a foto enquanto a coloniza. Esquematizando um pouco, dá pra dizer que o tempo do fungo é o agora, o da pedra é geológico e o da memória (o álbum) balança entre ambos.

 

A esta devoração fúngica e geológica Marcia apresenta dois, digamos, descansos antibióticos. O primeiro, cultural (“Santa”) ; o segundo, instantâneo e luminoso, quase imaterial (“Fotogramas”). O primeiro começa com a foto de uma caverna apoiada no chão, em escala com o espaço da galeria. O mesmo elemento tectônico das demais imagens, mas sem contraste com a cerimônia nem com a umidade e, portanto, não mais planar, mas perspectivo. Por isso toca o chão, criando uma espécie de trompe l’oeil que nos convida a entrar fisicamente. Saímos então da cena de origem, dos véus edipianos, do aroma de beleza e de morte. Há um corredor ao lado da foto, a caverna mesma, feita agora espaço da galeria, que nos leva à imagem da “Santa”, um estranho órgão sexual, algo como uma mandala ou caleidoscópio, um verso-reverso onde reconhecemos ainda braços e vestes e ventres mas que forma uma outra gruta, agora anatômica. Trata-se da sobreposição, invertida de uma imagem de um detalhe da mão e das vestes de uma santa, tirada de uma igreja da Piazza Navona, em Roma. Serve para construir uma “origem do mundo” (para lembrar o quadro famoso), origem cultural do mundo, que nos poupe um pouco da devoração da série anterior. De certa forma, a perspectiva do álbum de casamento, que a pedra e o fungo da primeira série negavam, é reposta através desta “Santa”. Entramos no ponto de fuga da caverna, caminhamos até a mandala-útero, sonhando conosco. Perdemos o mundo (os seres, coisas, sorrisos, carros, bolhas, do álbum de casamento), vagos e descorporificados, mas voltamos a nós.

 

Voltamos de fato a nós, agora devidamente desencarnados, quase emanações de luz, na terceira série da exposição, exposta na horizontal, em mesas à altura dos joelhos – a dos “Fotogramas”, quase o inverso simétrico dos trabalhos expostos na parede. Antitectônicos, mais próximos das folhas do que da raiz, da astrologia do que das linhas da mão, da rosácea luminosa do que dos parasitas microscópicos, liberam a luz que a memória prendeu, ou quis prender, num caderno, numa gaveta, num álbum de fotografia. Se na série “Geologia Doméstica” a luz aprisionada no álbum foi corroída pela vida bacteriana do planeta e pela desmesura geológica, na série dos “Fotogramas” ela segue seu fluxo sem se deixar pegar. Parece ter batido rapidamente no papel (e de fato é o que fez, por dois ou três segundos), e impresso o corpo da filha remota daquele álbum (é a primeira vez que a autora, de alguma forma anunciada na cerimônia de casamento dos pais, de fato aparece),  seguindo seu caminho astral. Apenas o contorno, a breve velatura desse corpo, ficou para nós – em escala real, como cabe à técnica dos fotogramas. Mas não há nada aqui daquele teatro de sombras com que Man Ray a tratou. A luz quer permanecer luz, como se o filme estivesse sobreexposto e o papel, livre dos fungos e das pedras,  fosse um enorme espelho. Estes trabalhos são de tal forma lisos e refletores que, curiosamente, é para o mundo dos raios-X que acabam apontando, como neutrinos atravessando memórias, tules, carne, ossos, expondo contrastes leves e marcas breves, numa matéria de alma, de pneuma, de anjo. Por isso voam deitados e olham para cima –  para deixar para trás, preso à parede, todo o peso doméstico e geológico de que somos feitos, e encontrar, para além do teto da galeria, nossa luz e atmosfera.

 

 

Notas : “Matéria e memória” é um livro de Henri Bergson; “Geologia da Moral” é um  capítulo do livro “Mil Platôs”, de Deleuze/Guattari