Ascânio MMM: As Medidas dos Corpos: Casa Triângulo, São Paulo, Brasil
Ascânio MMM: As medidas dos corpos
1. Medidas de harmonia
Existe um deficit da crítica e da história da arte brasileira com a obra de Ascânio MMM, algo já parcialmente reparado graças ao extraordinário esforço de Paulo Herkenhoff em sua recente publicação Ascânio MMM: Poética da Razão.[1] Em suas mais de 400 páginas, esse ensaio sublinha as passagens fundamentais na formação do artista e no desenvolvimento de sua obra e ainda tece uma notável reflexão centrífuga, que abrange inúmeros artistas, movimentos e conceitos. Tendo crescido em uma pequena vila no litoral norte português, estudado arte na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) e arquitetura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),[2] tendo ademais integrado o metiê reunido no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro na década de 1960 e convivido com parte substancial dos artistas cariocas, Ascânio traça uma trajetória repleta de pistas que o crítico anota enquanto monta um texto expansivo, que articula a reflexão sobre sua obra com inúmeros tópicos da história da arte contemporânea no Brasil. Em sua abertura, o texto acaba por complementar a tendência dos processos criativos de Ascânio, por natureza convergentes, centrípetos, sintéticos.
Nessa escrita, portanto, além da patente relação do artista com as vanguardas concretas e neoconcretas em sua primeira e segunda geração, a discussão dos seus processos se expande para os fundamentos da arquitetura e da matemática. Para isso, Herkenhoff mobiliza aproximações com arquitetos como Affonso Eduardo Reidy (1909-1964) e Mies van der Rohe (1886-1969), pensadores como Gottlob Frege (1848-1925), Martin Heidegger (1889-1976) e Alain Badiou (1937) e muitos outros, incluindo Fernando Pessoa (1888-1935, sob o heterônimo Álvaro de Campos):
O Binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.
óóóó – óóóóóó óóó – óóóóóóó óóóóóóóó
(O vento lá fora.) [3]
Apenas este poema já seria suficiente para guiar uma nova visita crítica à obra de Ascânio, mas há outra referência no ensaio que deve antes ser retomada e expandida, por sua extrema fertilidade: o livro Modulor, obra de maturidade do arquiteto franco-suíço Le Corbusier (1887-1965). O primeiro volume desse estudo publicado em duas partes, em 1948 e 1955, tinha como subtítulo “Uma medida harmônica à escala humana universalmente aplicável à arquitetura e à mecânica”,[4] donde se pode imaginar que seja uma ótima referência para discutir o sofisticado jogo de escalas e espacialidades da produção de Ascânio MMM. Não obstante, para poder refletir a partir do Modulor são necessárias algumas ressalvas, já que esse talvez seja, entre os documentos mais citados da arquitetura moderna, um dos menos lidos e mais incompreendidos.
Nos discursos contemporâneos, o mote mais recorrente de quem menciona o tratado corbusiano é corroborar a crítica ao esquematismo dogmático do chamado “Estilo Internacional” e sua indiferença à diversidade dos povos, culturas e corpos. Para esse argumento, a escala humana estilizada que aparece na capa da publicação é uma evidência de que o desejo de forma, razão e cálculo funcional e puro do modernismo arquitetônico leva invariavelmente à substituição das idiossincrasias de pessoas reais por autoritários modelos idealizados, coloniais e pré-fabricados. Mais ainda, a altura arbitrada como referência de escala do Modulor costuma ser tratada como signo de um elitismo étnico e ideológico. Todas essas críticas, que podem ser pertinentes no contexto geral de instrumentalização da arquitetura moderna no período pós-guerra, parecem ignorar o efetivo conteúdo desse livro e suas sutilezas.
De linhagem humanista, o texto do Modulor lida prioritariamente com um problema prático e uma ambição poética. O problema prático, que poderia ser resolvido de várias maneiras, é a incompatibilidade entre o sistema métrico e as medidas de pé-polegada; além de criarem problemas de conversão, as duas lógicas mostram-se incompletas, pois a primeira, arbitrária e abstrata, perde qualquer relação com a escala do corpo humano, e a segunda, historicamente ligada ao homem e seu corpo, oferece inúmeros desafios práticos ao cálculo. A solução de Corbusier passa por criar uma escala nova, compatível com os dois sistemas, de ágil manuseio e sentido antropocêntrico.
Até aí, poderia tratar-se de considerações de um ambicioso engenheiro ou matemático.[5] O sentido maior do trabalho, no entanto, está em sua ambição poética.
Le Corbusier admira o desenvolvimento humano da notação dos sons em escalas musicais. Entende que elas não apenas administram a impossibilidade de registrar de forma estática o fenômeno temporal e contínuo do som, mas o fazem tendo em conta o espectro sensível da acústica humana e organizando uma série de relações de proporção que se provaram, ao longo dos séculos, tão flexíveis quanto harmônicas. Segundo parâmetros de proporção geométrica dentro do campo sonoro, a notação escalonada carrega em si mesma certa consistência matemática, correlações com fenômenos naturais concretos e, ainda, princípios de harmonia compositiva de fácil cognição e aplicação. O arquiteto admira esse sistema construído pelo homem, aplicável à natureza, racional, flexível e, ainda, poeticamente afinado. Ele sonha, então, com a possibilidade de criar um equivalente para a medição do espaço: uma escala harmônica adequada à escala do homem. Para isso, estuda modos de aplicar a secular razão áurea às medidas e espaços, criando patamares de medidas encadeadas segundo uma proporção comum, historicamente associada ao equilíbrio de formas da natureza e do homem.
Se tal advento fosse possível, a compatibilidade entre peças, espaços e materiais da arquitetura seria universal e diminuiria desperdícios. Mais ainda, mesmo o mais inexperiente dos arquitetos partiria sempre de medidas proporcionais e harmônicas – da mesma forma que todo compositor conta com os fundamentos da composição na própria escala musical. Ainda assim, como Le Corbusier dedicou-se longamente a demonstrar, o espaço para o improviso e a invenção se manteria, pois infinitas possibilidades de composição criativa seriam possíveis. Não se tratava de impor uma medida única para o corpo humano, nem sequer de padronizar a forma e o estilo arquitetônico, mas sim de estabelecer princípios lógicos e esteticamente coerentes para um novo estágio de difusão da linguagem arquitetônica.
Pois bem, como esses princípios quase soterrados pela apropriação crítica da ferramenta do arquiteto franco-suíço podem nos ajudar a criar intimidade com a obra do artista luso-brasileiro Ascânio MMM?
Uma das características que primeiramente se apresentam ao observador mais atento das obras de Ascânio é que, embora sua aparência seja facilmente compreendida em contiguidade com o legado das vanguardas concreta e neoconcreta, existe uma enorme discrepância em sua relação com a ordem e a razão matemática.
Ainda que os discursos pioneiros do concretismo brasileiro venham muitas vezes embebidos do elogio à cristalina lógica do cálculo da matemática e da engenharia, são raríssimos os exemplos dessa vanguarda que tenham efetivamente se atido a tal clareza e à precisão. É bom lembrar que nem toda geometria é coesa e precisa em sua tradução numérica: há retângulos e ortogonalidades que estão mais próximos do intuitivo trato compositivo do que de qualquer sistema ordenado e reconstituível. A razão da engenharia comparece nas abstrações geométricas da década de 1950 mais como alegoria do que como práxis.[6]
Para Ascânio MMM as coisas são diferentes. Ele efetivamente pratica o cálculo de progressões aritméticas e geométricas, planeja deslocamentos angulares, lida com trigonometrias e encontra linhas tangentes. Praticamente todas as suas obras desde meados da década de 1960 podem ser reconstituídas como fórmulas matemáticas enxutas e cristalinas. Fenômenos concretos, suas esculturas e relevos possuem correspondentes no território da lógica abstrata. Por mais sinuosas as curvas que desenhem no ar, por mais surpreendentes suas topologias, mantêm sempre a legibilidade das razões numéricas que fundamentam a invenção e a construção efetiva de cada peça.
Não se trata da tensão limítrofe entre número e traço livre, invenção e modelo, forma e cálculo. Em Ascânio – como no Modulor corbusiano – esses binômios possuem relação de parentesco, não de antinomia. Podemos tomar como exemplo os relevos Triângulo Projetado (1968) e Múltiplo 24 (1976), duas das peças que recebem o público que adentra esta exposição; o que é que as constitui? São ripas de madeira dispostas segundo padrões rítmicos calculáveis. Na primeira, ripas perpendiculares ao plano da parede são fixadas duas a duas em ângulo reto e, então, posicionadas em intervalos progressivamente maiores em razões diferentes no eixo vertical e horizontal, delineando uma curvatura tênue no cerne de uma malha ortogonal. Na segunda, as ripas de madeira, paralelas à parede, posicionam-se em leque em torno de um único ponto de torção, segundo uma razão angular constante, e são interrompidas por diagonais losangulares agudas que definem uma linha de corte que dá contorno verticalizado a uma forma de princípio nuclear.
Decifradas em palavras ou equações, as peças podem soar abstratas ou frias, justamente o contrário do que são: presentes e concretas. Essa paralaxe é equivalente ao que se experimenta lendo sobre composição musical, quando a precisão das palavras e das razões harmônicas ajuda a traduzir o fenômeno, mas não substitui o maravilhamento do ouvinte. Não seria esse o horizonte de Corbusier? Uma composição espacial exuberante como criação e experiência, que carregasse razões matemáticas em seu cerne, sem reduzir-se a elas? O manuseio do número que extravasa sua abstração e demonstra – como fazem a natureza e o matemático avançado – as infinitas possibilidades de forma, ordem, estrutura e movimento guardadas em seu interior.
Nas esculturas brancas, verticais e espiraladas de Ascânio MMM, como Escultura 2 (1976), o empilhamento de ripas gradativamente torcidas em ângulos calculados em torno de eixos verticais leva esse raciocínio ao limite da surpresa e da sensorialidade (e da sensualidade). Nelas, transpiram associações possíveis a razões harmônicas consagradas como a tremulação das ondas sonoras, a razão áurea representada no Modulor e a voluta associada à atitude barroca. Tais associações atestam o quão longe vai a poesia do cálculo em Ascânio, que alcança tamanha exuberância na sugestão de movimento espacial que fica a um passo de sublimar sua simplicidade lógica.
Não obstante, a maior prova da integridade do cerne matemático de sua obra está em sua presença mais singela: nas intrigantes Caixas (1968-1969), aqui reunidas logo à entrada da exposição. Obras abertas à participação, as Caixas são recipientes modulares em que uma mesma geometria se repete em escalas sucessivamente reduzidas, uma dentro da outra. Como bonecas russas reveladas, elas se abrem ao olhar e, também, ao manuseio do público, que aproveita as diferenças intervaladas de escala entre os módulos para redefinir alinhamentos e distâncias. No jogar lúdico com as peças, muitas jogadas e arranjos são possíveis, com um sem-fim de pequenos desvios e desalinhamentos à disposição do público. Ainda assim, a abertura das peças não pode ser confundida com passividade. Elas possuem estrutura e caráter, de tal modo que, não importa o que o participador faça, a conformação final sempre mantém certa integridade. Isso, a parcela íntegra no jogo de variações, decorre justamente da razão entre as espessuras e tamanhos das peças que garante o ritmo da composição a todo momento.
As caixas são, portanto, como “medidas harmônicas à escala humana aplicáveis à composição”. Não à toa, foram usadas pelo próprio artista como modelo para a criação de uma parcela de seus relevos brancos. Assim como o público, Ascânio brincou com as caixas e nelas encontrou ritmos e dinamismos visuais que consolidou em peças como Triângulos 1 (1968-2009), que cristaliza um dos arranjos possíveis da Caixa 3 (1969). Seria impreciso presumir que a lógica matemática funciona como molde restrito: ela na verdade é a estrutura consistente de um jogo aberto a inúmeras possibilidades que o artista tem depurado ao longo de suas décadas de produção.
2. Estrutura, construção e saber fazer
Estrutura, pois. Mesmo quando sua topologia visível se torce em volutas sinuosas, a escultura de Ascânio MMM reflete uma mesma precisão estrutural que, claro, começa pela lógica matemática, abrangendo também sua materialidade concreta. Seja como legado de seus estudos arquitetônicos no Rio de Janeiro, seja como rememoração da fabricação de navios em sua cidade natal, ou ainda como manifestação física dos princípios da geometria, o fato é que transparece o apego a algumas lógicas construtivas recorrentes.
Na arte brasileira, convencionou-se ampliar o termo “construtivo” até abarcar todo desejo de estruturação abstrato-geométrica das formas. Por ser um dos pilares da historiografia local, o termo tende a ser aplicado com um ou outro ajuste a todo artista direta ou indiretamente ligado às vanguardas concretas e neoconcretas no país e, como se trata de conjunto muito diverso, acaba alargando em demasia o seu significado. Em Ascânio, portanto, cabe precisar em que sentido o conceito se aplica.
Podemos então falar de construção da mesma maneira como falam os arquitetos modernos: sintaxe em que cada forma decorre diretamente, sem ornamentos ou disfarces, de um modo de medir os materiais e estruturá-los entre si, vencendo a gravidade como corpo autoportante no espaço físico vivenciado pelo homem. De fato, nada sobra na escultura ascaniana que não esteja “trabalhando”: são formas em suspensão, materiais em equilíbrio, pontos de apoio e estruturas – mais especificamente, os recursos fundamentais de toda a poética (construtiva) de Ascânio são o eixo e o módulo arquitetônico.
Novamente, suas esculturas brancas são paradigmáticas. Seus módulos são explícitos: ripas de madeira (ou de metal, em obras preparadas para espaços exteriores) que tendem a ter a mesma espessura e comprimento.[7] A relação entre esses módulos também é muito clara: empilhamento ou justaposição com deslocamentos sucessivos em torno de um eixo que em geral não é apenas virtual, mas também concreto. Os eixos verticais, horizontais ou diagonais são efetivamente estruturados por peças metálicas que “amarram” a peça de ponta a ponta.[8] O caráter direto e pragmático dessas soluções talvez fosse improvável por um raciocínio que partisse puramente da genealogia da escultura ocidental, mas é totalmente plausível em uma abordagem arquitetural do objeto escultórico/espacial.
Se existe, como diz Herkenhoff, um “inconsciente arquitetônico” que atravessa a obra de Ascânio e a liga subliminarmente ao humanismo do modernismo pós-guerras de Corbusier, de Candilis (1913-1995) & Josic (1921-2011) e do brasileiro Affonso Eduardo Reidy, há também um consciente recurso à razão arquitetônica e ao seu “saber fazer” na lida constante e insistente com os materiais no interior do ateliê. E isso não se restringe às esculturas brancas, antes se fundamenta ali e se expande e confirma nas explorações de outros acabamentos e materiais.
Dessa maneira, o emprego da madeira nos seus Fitangulares decorre diretamente da exploração de faixas modulares justapostas e seccionadas em cortes angulares evidentes. Em Fitangular Ipê 1 (1985), por exemplo, o contraste entre linhas mais e menos claras torna mais explícitos os cortes e angulações decorrentes, que transformam o paralelismo horizontal em uma oscilação de diagonais dinâmicas.
Nas esculturas feitas em madeira aparente, a lógica modular se mantém, embora apoiada em concepções alternativas de empilhamento. Nas Piramidais e nas obras batizadas com nomes tupis das madeiras empregadas, a fatura opera por soma direta, empilhamento literal que enfatiza a diferença entre lateral e topo dos módulos em cada face das esculturas. Já nas Formações, o eixo vertical persiste, mas libera-se da solução retilínea para experimentar soluções que remetem a anéis ou portais. Assim, ambas as famílias escultóricas enfatizam a fisicalidade específica de seus materiais e, ao driblarem a simetria que em geral decorre do eixo único centralizado, marcam diferenças a cada ponto de vista.
Nesta mostra, Formação 20 (1979) é um caso limite, que chega a confundir quem a conhece apenas por fotografias: é preciso considerável dose de imaginação espacial para perceber como aparências tão diversas de uma topologia supostamente simples podem decorrer da mesma forma observada de diferentes ângulos – a imagem se transforma conforme o espectador se desloca. Já Gramixinga 1 (1986), também incluída na exposição, subverte o sentido usual de justaposição das ripas, posicionadas lateralmente em ângulo próximo ao vertical – o ritmo das diagonais remete às angulações bidimensionais das Fitangulares, mas é o volume da peça resultante que lhe permite ganhar as proporções de um pilar e sustentar o próprio peso sobre o solo, ademais criando um sutil desemparelhamento entre suas metades que sugere a iminência do movimento.
O sentido construtivo da trajetória de Ascânio se confirma nas peças em alumínio que começou a produzir no início dos anos 1990. A família das Piramidais que, como já mencionado, inclui experimentos em madeira aparente, demonstra exatamente a importância do emprego estrutural dos materiais para sua pesquisa plástica. Embora nas Piramidais o princípio básico nas peças metálicas seja exatamente o mesmo empregado nas de madeira – a justaposição lateral de perfis ortogonais em sólidos angulosos –, as diferenças ultrapassam em muito as discrepâncias óbvias de cor e brilho. Com sua ótima relação entre massa e resistência, o perfil de alumínio permite às esculturas alcançarem escala monumental, além de possuírem especial durabilidade.
Tal durabilidade habilita essas peças a enfrentarem o desafio dos espaços públicos, como no caso de Piramidal 12.4 (1991-1993), versão anterior da obra instalada em Fão, Portugal, aqui posicionada no espaço externo da galeria. Com seus 5,20 metros de altura e pouco mais de 400 quilos, a forma de verticalidade acentuada responde à altura da fachada e ao gabarito das construções do entorno, como pontuação que dialoga com as preexistências do espaço urbano. Mesmo mais alta que os pedestres, a peça evita interromper a horizontalidade que a cerca. Apesar da escala arquitetônica, é surpreendentemente leve e de rápida montagem. A despeito da opacidade reflexiva do metal de suas peças, permite que os olhares a atravessem em sua desconcertante transparência. Assim, pelo uso sagaz dos materiais estruturados por um critério construtivo coerente, o artista realiza uma obra que é ao mesmo tempo marco e passagem, monólito e janela, corpo e espaço.
3. Um corpo, outro e ainda outro
Ainda que este ensaio trace um percurso lógico que se inicia pelas razões de proporção e avança pelo sentido construtivo e arquitetônico da estruturação material das esculturas de Ascânio, é preciso lembrar que o real desenvolvimento de sua obra muitas vezes burla a linearidade entre ideia, forma e realização. É que, a despeito de tanta familiaridade com o que é do número, do cálculo e da estrutura, sua obra evita a separação polarizada tão comum para os arquitetos, que colocam projeto e desenho de um lado e canteiro e objeto do outro, como dois campos segregados pela divisão do trabalho entre quem pensa e quem faz.
Aqui, vale citar todo um trecho do depoimento do artista:
Na minha obra há uma questão importante. Todos os trabalhos são executados no meu atelier, o percurso PROJETO / OBJETO é realizado no meu atelier. Eu projeto e construo a obra, determino o perfil do alumínio, que chega ao atelier em barras de 6 metros. O alumínio é um material usado na indústria, especialmente na construção civil. A manipulação do material, a descoberta de novas potencialidades do material – tanto na madeira quanto no alumínio, no cortar, no furar etc. – tem sido muito importante na pesquisa e descobertas de novos caminhos. Os Quasos, minha pesquisa de hoje, só foi possível no meu dia a dia no atelier. Com certeza eu não chegaria a eles sem esse embate diário.[9]
De fato, a precisão lógica de Ascânio e sua clareza estrutural apenas podem existir corporificadas pela lida direta com a matéria no fazer cotidiano. Assim, há um embate corporal que – mesmo em elipse no acabamento preciso das obras – é fundamental para seu fazer criativo. Como o próprio artista enfatiza, sua produção recente com segmentos estreitos de perfis metálicos articulados em superfícies e volumes diversos só foi possível pela insistência na observação de um material que já se acumulava no ateliê como resíduo do trabalho e que ganhou propriedades plásticas muito específicas com o emprego de distintas maneiras de amarração.
O mesmo amontoado de finos recortes de perfis metálicos (entre quadros e aros) pode virar diferentes superfícies se estes forem tomados como módulos de uma malha ortogonal não plana. Noutras palavras, os perfis de alumínio de 2” x 2” cortados em centenas de seções de 1 cm de comprimento podem ser fixados uns aos outros por furos em suas laterais, formando uma espécie de colcha; e se essa fixação não for simplesmente rígida e ortogonal (como é a aparafusagem das esculturas Piramidais e dos relevos Estrutura), então criam-se planos “moles” ou moldáveis.
Assim são as famílias dos Flexos e Qualas que Ascânio desenvolve desde 2003. Nos primeiros, as peças são associadas por pedaços de arame torcidos, como fazem os pedreiros com as “armaduras” metálicas no interior das vigas de concreto; na segunda, as mesmas peças são associadas com argolas pequenas, como aros das antigas cotas de malha medievais. Em ambos os casos, os requadros quadrados se somam em superfícies sinuosas e curvas, mas nos Flexos o movimento aparece congelado pela resistência elástica do arame que sustenta certo arranjo, enquanto nas Qualas a gravidade (e eventualmente o público) atua continuamente moldando a forma em inúmeros arranjos possíveis que atuam tanto no plano visual quanto no tátil.
Mais recentemente, o artista iniciou ainda outra família, dos Quasos (desde 2014), em que a ligação entre os módulos é feita por parafusos de comprimentos diferentes, gerando complexas superfícies topológicas em um jogo de negociação do peso das peças com a gravidade. Vejam-se, nesta exposição, a peça de transição Qualas 1 (2004), a delicada Qualas 13 (2010), a massiva Qualas 11 (2008) e a inédita Quasos 14 (2016). Em todo esse conjunto transparecem indícios do trabalho do corpo que corta, aparafusa, torce, amarra e joga com o peso e a resistência dos materiais.
Este não é, porém, o único corpo em cena. Algo ainda pouco discutido na obra de Ascânio MMM é a qualidade corpórea de suas obras. Mesmo estritamente desprovidas de figuração, uma grande parcela delas – em especial suas esculturas – orbitam em torno da escala do corpo humano, espectador sempre considerado nas decisões do artista. A seleção de obras de diversos períodos e materiais reunidos na exposição Ascânio MMM: As medidas dos corpos responde a uma série de objetivos: demonstrar, por metonímia, a complexidade da trajetória do artista desde a década de 1960 até hoje; criar uma espacialidade complexa que escapa das associações lineares por série ou período em um conjunto de temporalidades transversais; e explorar o caráter corpóreo, quase de personagem, de sua produção escultórica.
Percorrer o espaço da galeria será como caminhar entre obras que são também figuras de densidade e sinuosidade particular, com certa postura, porte e movimento únicos dentre a soma de volumes e, por que não, sugestivas de alguma atitude personalíssima. Assim, reunidos, os volumes enfatizam seus estados e propriedades em um só espaço de encontro.
Mais ainda, nos extremos da exposição evidencia-se que tudo isso propicia uma sequência de oportunidades ao corpo do espectador, que completa com a medida de sua escala e a espontaneidade de seu movimento a fisicalidade das obras decidida pelo artista. Ainda do lado de fora da galeria, a Piramidal 12.4 responde com opacidade ou transparência de acordo com a posição do visitante em movimento; em seguida, as Caixas pedem pelo toque e improviso de quem entra na sala, logo depois o emaranhado monumental de Qualas 14 se impõe como volume repleto de tilintar acústico e visual, com proporções arquitetônicas e a gradual revelação dos objetos que recobre parcialmente; segue-se então uma série de esculturas de acentuada verticalidade, corpos eretos em repouso ou iminência de ação, e, então, na última parede, Quasos 14 conjuga uma forma protuberante agitada e vazada com o deslimite do espelho que traz para dentro de si o duplo da sala inteira e, consequentemente, o duplo do corpo do visitante que termina por se ver assimilado como parte das equações de medida e harmonia no espaço propostas pela obra do artista.
Assim, voltamos ao princípio, à confabulação sobre uma “medida harmônica à escala humana universalmente aplicável”. Nas sinfonias espaciais deste artista, essa possibilidade visionária estará sempre atrelada à poética dos corpos em movimento e da reciprocidade entre obra e espectador, mediada pelo saber medir e saber fazer concretizado em escultura.
O que o deficit de atenção para com Ascânio pode desperdiçar é precisamente a clareza dessa resolução que sabe convergir tantos dos anseios de três ou quatro gerações de artistas e arquitetos que atravessaram o século XX em busca de uma nova espacialidade generosa, provocativa e sensível aos anseios de uma humanidade crescentemente desapegada dos símbolos de dominação, segregação e diferença. Nos atuais tempos de recrudescimento de diferenças incomunicáveis, enfatizar esse legado tornou-se um ato de esperança.
Paulo Miyada
[1] São Paulo: BEI Comunicação, 2012.
[2] Nascido em Fão, Portugal, em 1941, o artista mudou-se para o Rio de Janeiro em 1959. Estudou na ENBA nos anos de 1963 e 1964, tendo se graduado na FAU-UFRJ entre 1965 e 1969.
[3] Essa introdução pelos argumentos e abordagens do texto de Paulo Herkenhoff faz-se necessária para referenciar um estudo que desde sua publicação abre novos horizontes de possibilidade de entendimento da obra desse artista no âmbito da história da arte brasileira.
[4] Tradução livre do original “Une mesure harmonique à l’échelle humaine applicable universellement à l’architecture et à la mécanique”.
[5] De fato, Le Corbusier produziu esse estudo visando apresentá-lo à Associação Nacional Francesa para Estandardização (AFNOR); acreditava estar atuando como arquiteto ao abordar um problema de escala global.
[6] Os exemplos são inúmeros. Pode-se verificar enorme parcela de arbítrio intuitivo sem lastro geométrico na produção concreta de Waldemar Cordeiro (1925-1973), por exemplo, a despeito de seu discurso. Também Ivan Serpa (1923-1973), para tomar outro exemplo icônico, quase nunca é programático em suas abstrações geométricas. Em seu ensaio, Herkenhoff faz comentário similar sobre os relevos brancos de Sérgio Camargo (1930-1990). Dentre as exceções estão os escultores Amilcar de Castro (1920-2002) e Franz Weissmann (1911-2005).
[7] Em cada peça, os módulos têm sempre o mesmo perfil (altura por largura) e costumam ter o mesmo comprimento – com exceção das vezes em que um “corte” diagonal altera seus comprimentos, como no já mencionado Múltiplo 24, mas mesmo nesses casos a aparência é de que as ripas poderiam ter sido originalmente idênticas e apenas posteriormente alteradas. Outra exceção são as ripas que, além de módulo, são também “eixo” transversal entre duas colunas paralelas; nesses casos, a ripa assume comprimento dobrado.
[8] “Nas esculturas brancas de madeira, eixos de aço polido com rosca nos dois extremos e porcas. Nas esculturas acima de 150 cm, a bitola é 1/2” (meia polegada), abaixo deste tamanho uso eixos de 3/16”, 1/4” ou 3/8”. Nos relevos brancos 3/8” ou 1/2”. Nas esculturas em espaços públicos, uso o tubo de aço inoxidável de 1” a 3” (2,54 a 7,62 cm), com porca nos extremos. A bitola é determinada pelo tamanho da escultura”. E-mail enviado pelo artista ao autor em 16 de junho de 2016.
[9] E-mail enviado pelo artista ao autor em 16 de junho de 2016.