VÂNIA MIGNONE . A ESPERANÇA EQUILIBRISTA

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Apresentação

Incompletude completa. 

Encontrei Vânia Mignone numa terça-feira de manhã. Ela vinha apressada, tendo tomado a estrada depois de sair de sua casa em Campinas, lugar onde vive com seus cachorros, seu universo onírico, sua paz, suas tintas acrílicas e pincéis, os papéis que retira de revistas e de outros documentos que lhe caem às mãos, e suas chapas de MDF – as quais mal dão conta da inventividade da artista que aumenta, junta, diminui ou amplia essas superfícies lisas de madeira, a depender do projeto e da própria imaginação.  

Pois Vânia me conta que nunca sabe para que lugar a obra irá lhe levar. Nada é previsível ou planejado. Por isso mesmo, os trabalhos deixam as marcas de sua feitura, realizadas a partir da densidade das várias camadas de tinta acrílica – que cuidadosamente criam e recriam novas e inesperadas situações –, das imperfeições dos cortes da madeira, das colagens que entram em meio ao processo, na maior parte das vezes sem motivo claro ou pré-determinado.

Vânia possui uma sólida formação como artista plástica, mas tal tipo de aptidão nunca lhe foi suficiente. Ela diz preferir os corpos disformes e as expressões imperfeitas. Também é formada na área da publicidade e da propaganda, campo que lhe adicionou não exatamente uma profissão, mas, antes, mais uma virtude na elaboração e confecção das suas telas. Tudo é direto e comunica como um anúncio de jornal ou um outdoor de rua. Mas diferente deste tipo de material, e como teremos tempo de desenvolver, neste caso, a primeira impressão nunca é a última.

Nos seus trabalhos, figuras humanas, animais e arquiteturas afetivas contracenam com uma palheta de cores fortes, quentes e primárias – o preto, o vermelho, o verde, o rosa claro, o laranja, o amarelo e o roxo. Elas foram herdadas da prática de produzir cartazes e outdoors que aprendeu em seu curso de publicidade. Mas viram aqui outra linguagem, mais desordenada e fluida.

Também as palavras fazem parte da estrutura da obra de Vânia. Pretensamente fáceis, sem nuances ou ambiguidade – como aliás determinaria qualquer manual da profissão –, elas se imiscuem no processo criativo da artista e ajudam a narrar uma história.  Por vezes, várias histórias.

As palavras lembram, igualmente, à poesia concreta: são poucas, sintéticas, estrategicamente dispostas, e sempre muito carregadas de simbolismo. Ademais, seu significado advém da posição e da relação que ganham no conjunto do quadro. Seu sentido não se faz sozinho. Ele se incrusta na estrutura e se imiscui na estética da obra. 

Colagens inserem-se também na fatura desta artista. Interessante pensar no papel da técnica na obra de Vânia. Em boa parte das vezes, esses pequenos recortes como que passam desapercebidos – lá estão eles, se impondo ao todo do quadro, como se estabelecessem um diálogo sensível e delicado. Um outro índice de leitura.

Tais materiais são, por sua vez, retirados de revistas, fascículos, livros de arte .... Vânia canibaliza esses pedaços de significado recortados, para introduzi-los em outros contextos; igualmente artísticos. Uma cadeira isolada, um cavalo revisitado, uma torre misteriosa.

Mas é possível adicionar mais uma camada a essa que é uma sorte de arqueologia artística. As telas de Vânia lembram os livros de cordel, com suas aventuras, personagens rocambolescos e passagens de sonho. Se o gênero é com frequência marcado pelo ritmo dos versos que dialogam com imagens apenas delineadas com o traço feito em xilo; já no caso dos quadros da artista – que também devem muito à xilogravura, a primeira arte com a qual ela se aventurou – a situação é apenas alusiva. As figuras não confirmam o que está descrito pelas palavras. Também não desmentem. Pois esses elementos gráficos e significativos contracenam em situação de igualdade, mas também de dissonância com o restante da obra. Há sempre um ruído a separar as palavras das coisas. Uma espécie de verso desafinado. Verso como forma visual; a poesia enquanto estética.

Na verdade, as palavras introduzem mais uma cor na palheta da artista, e não se confundem, assim, com um suposto título para o trabalho, ou uma mensagem única e gravada no quadro. Pensadas nesse sentido, elas mais despistam do que indicam uma direção a seguir. 

O certo é que se as pinturas de Vânia carregam significados múltiplos. Além do mais, se numa passada de olhos, mais apressada, elas ganham uma tradução fácil – com suas cores primárias, as figuras bem definidas, e as palavras que parecem entregar um enredo – tal impressão logo se esvai. Isto é, essa primeira observação, ligeira e superficial, não resiste ao olhar mais demorado e comprometido. Há sempre uma incompletude constitutiva, um certo suspense, algo que falta e que nos convida a entrar mais uma vez (e por outra porta) no universo da obra.

Resta explorar ainda, mais outra influência, talvez menos evidente, nos trabalhos da artista. Vânia me contou que veio de seu avô paterno comunista – o pai é engenheiro agrônomo e professor na Unicamp e a mãe proveniente de uma família de músicos – essa intimidade com os panfletos: da arte como um panfleto. Veio igualmente do ambiente familiar a paixão por Vladimir Maiakovski, esse poeta, dramaturgo; um verdadeiro intérprete da Revolução Russa. Por sua vez, devemos a ele, também, a energia de protagonizar um tempo em que se julgava possível mudar o mundo, tendo a sociedade como timoneira. Um mundo sem tantas desigualdades e governado pelo povo – ainda tão ausente da maior parte dos projetos sociais

São de autoria de Maiakovski uma série de cartazes exaltando a Revolução – aos quais Vânia se refere com interesse. Afinal, além de fazer publicidade de diversos produtos, o escritor fundou uma revista que congregava a “esquerda das artes”. Ou seja, uniu uma comunidade de artistas que desejavam inventar uma “forma” para um projeto de renovação social.

Como se vê, não há como atar os trabalhos de Vânia Mignone a um sentido só ou à famigerada definição de influência. Pois o importante não é o que colocamos no balaio das nossas vidas, mas como colocamos.

E no caso desta artista virtuosa, todos esses fios se encontram de tal forma emaranhados, que já não é possível discernir o joio do trigo – a linha do novelo. De toda forma, esse apego à poesia das fórmulas simples, líricas, épicas e bem-humoradas, tudo ao mesmo tempo, está presente nesta obra em que o preto e as cores básicas são uma constante. Um mistério constante.

Assim fazendo, a linguagem russa acaba por se adaptar ao pop colorido, a revolução social à dissidência da pauta dos costumes, a divulgação de massas dos russos à arte intimista desta artista que cita Legião Urbana e Renato Russo, como modelo de simplicidade e de contundência.

E é o conjunto equilibrado e esperançoso destes elementos que nos convoca: a luz que lava, a dança das cores fortes, as tantas histórias que a tela conta, a cor que as palavras adicionam, o jogo entre a figura e o fundo.

 

 

 

A esperança equilibrista

Chamei a nova exposição de Vânia Mignone, que ocorre de 21 de setembro a 1 de novembro de 2024, na Casa Triângulo, de “A esperança equilibrista”. Interpretada por Elis Regina no contexto obscuro da Ditadura Militar, que se instalou no Brasil de 1964 a 1988, a canção virou hino de uma geração que carregava consigo a utopia da democratização, ainda que tímida. Esse desejo se equilibrava, por sua vez, no fio da vara de um regime que retirou direitos e transformou o Estado numa máquina de tolher qualquer oposição. Já a obra da artista, tem o dom de equilibrar o traço fino, mas consistente, a figura definida, mas de ambiente incerto, a palavra afirmativa, mas de sentido oscilante.

E assim, até porque Vânia não dá nomes às suas exposições, eu a batizei, por conta e risco próprios. Nessa mostra, e como sempre ocorre no universo pictórico da artista, podemos prefigurar várias narrativas; todas abertas, incompletas. Pois, afinal, cabe ao público completá-las.

Como a descrição de um quadro é sempre menos que o próprio quadro, e como o registro escrito de uma exposição é sempre (muito) menos do que ela própria – que pode ser vista em 360 graus –, não tenho aqui a veleidade de resumir os trabalhos que compõem essa mostra. Prefiro me deter em algumas sequências e dar a elas uma direção, a qual, no meu entender, retoma a obra da artista de maneira mais capital e abrangente.

Aliás, o nome com que batizei essa exposição é retirado de uma obra. Nela, vemos o corpo de uma mulher, e sob ele lemos: “equilibrista solar”. A postura da modelo, seus braços abertos diante de uma espécie de infinito, parecem evocar a plenitude. No entanto, a palavra “medo” aparece estampada no rosto dela, criando uma sorte de enigma. Uma contradição diante da imagem, do gesto e da cor da palavra.  Por isso pensei na imagem da “esperança equilibrista”, que repisa a força daqueles que continuam a lutar, a despeito do medo, a despeito da contrariedade. Que brigam sempre. E como disse a personagem principal do filme de Wim Wenders – “O amigo americano” – “não há nada a temer senão o medo”. 

O universo feminino assume lugar predominante na obra de Vânia. Pensativas, elas são sempre um tanto enigmáticas, misteriosas, pensativas; elas que dominam também esta exposição feita pelas mãos desta artista mulher, e que cria universos tão densos de subjetividade que perdem, inclusive, suas marcas mais óbvias de gênero.

Há outro aspecto que me chamou a atenção. Nesta nova exposição, destacam-se mais uma vez uma série de palavras, pretensamente soltas. Em comum elas trazem a ideia de uma representação, de um espetáculo que é sempre pensado como um duplo entre a realidade e a ficção. Nesse sentido, se todas as obras de Vânia podem ser consideradas autobiográficas, pois fazem parte da observação e do mundo sensível e afetivo da artista, elas também carregam potenciais próprios da cultura, que nunca se comporta como mero reflexo ou produto imediato de seu momento. Ao contrário, ela, a cultura, sempre produz aquilo que formalmente espelha. Esta é, por sinal, a potencialidade reflexiva da arte, que tem o dom de incluir não apenas aquele que participa do mesmo contexto, mas também de inventar novos contextos.

Mas nesta mostra, as palavras incidem com mais frequência sobre o duplo da representação. E não só o teatro (re) apresenta, mas também a pintura, que como arte nunca repete mecanicamente o tempo em que lhe foi dado viver. Com frequência lhe adiciona outros sentidos, camadas e significados.

Como sempre ocorre nas mostras de Vânia, é possível ver as obras de maneira isolada ou uni-las em sequências, não obrigatórias, mas que conduzem o expectador a certas narrativas privilegiadas – mas nem por isso mais facilmente traduzíveis.

Vejamos uma delas: “Essa tarde, no aeroclube, um mergulho, espetacular”. As margens dessa sequência, não obrigatória, de quadros estabelecem uma espécie de faixa continuada acima ou abaixo das obras, funcionando quase como um sinaleiro que indica “certo percurso a seguir”. Nessa sequência, por exemplo, Vânia desliza a tinta rosa claro dos rostos, de maneira a alcançar a própria paisagem. Esse é o cenário privilegiado da artista. Um cenário bastante ermo, em que o personagem – um pouco circense – observa um ponto fixo, que não nos é dado visualizar. Talvez não seja necessário refazer esse mesmo percurso, pois é nova a estrada que se dispõe diante de nós. O que teria acontecido no aeroclube? O que será que o olhar do figurante sinaliza? Como sempre ocorre, Vânia não nos faculta respostas, mais deixa perguntas.   

Há uma outra sequência que alude mais de perto ao circo. “Urso, Leão, Tigre” são palavras grafadas em preto, vermelho e branco, sucessivamente. Sempre em letras maiúsculas. Por sinal, Vânia me conta que nunca usa letras minúsculas ou cursivas – em mais um diálogo com a linguagem da propaganda e dos cartazes da Revolução Russa. Todavia, a artista não introduz palavras nos quadros com a intenção de induzir, vender ou influenciar. Elas são recursos estéticos e semióticos. Tanto que, muitas vezes, encerram-se em si mesmas. Palavras, sentenças e imagens carecem de mensagens prévias ou únicas. Parecem se comportar muito mais como um incentivo à contemplação.

O mesmo ocorre com as paisagens. Se o cenário é de circo, lá não estão os animais anunciados pelas palavras. É possível apostar, mais uma vez, na sequência das telas a partir das barras coloridas que se desenham apenas quando observamos esse o conjunto de 10 pinturas. Na primeira delas lemos a frase, “A fera no centro do palco”, com um homem observando um espaço só delineado por uma frágil e quase trêmula linha branca. Abaixo, em mais outra imagem, duas escadarias vermelhas iluminadas por lustres coloridos aparecem no centro da representação, mas sem que ninguém surja para subir nelas. Reina um certo vazio desconfortável para quem quer encontrar nesses quadros respostas e não projeções.

“A fera” comparece nesses trabalhos apenas de maneira alusiva, a partir das patas de um cavalo que pisoteia o rosto de uma mulher desnuda, a qual nos devolve o olhar, como que nos convidando a entrar na representação. A cena é de medo ou de comunhão?

Tanto que, em mais outra obra incluída nesta mesma sequência, agora é a cabeça deste cavalo que observa de soslaio ao expectador. Nosso olhar convencional, que nos faz ler da esquerda para a direita e de cima para baixo, percorre o conjunto. Assim fazendo, logo divisamos os dizeres, “o corredor-jaula aberto”. A frase contrasta com um cortinado vermelho e uma espécie de semáforo à esquerda (todo com luzes vermelhas, de pare, acesas) e outro mais à direita em que as luzes oscilam entre o amarelo e o azul. Foi da jaula aberta que escapou a fera, ou somos nós, o público? E qual é o nosso papel neste espetáculo cujas cortinas encontram-se abertas, e prontas para a função? Mais uma vez, Vânia não pretende nos fornecer respostas.

Mas a mesma sequência imaginária nos leva a, ainda, outros caminhos. Acima, destaca-se uma mulher que parece observar a cena; ao passo que, mais abaixo, voltamos à tela que traz a frase: o “Urso Leão Tigre”. Esses são animais que deveriam estar, pretensamente, domados e devidamente amestrados para se apresentarem nos aparelhos desenhados por Vânia. Mas não sabemos se são, de fato, domesticados. E, afinal, eles nem ao menos estão lá. Quem domestica quem? Seríamos nós os ursos, leões e tigres desse circo imaginário?

“Roxo”, “verde” são as palavras da imagem que se segue, dando continuidade à sequência que vimos até aqui descrevendo. Essas são também as cores deste “cavalo-fera”, que agora contracena com um colorido forte: quase um arco-íris. A pequena narrativa termina, porém, com a palavra “Silêncio,” e com duas figuras de clowns com suas faces brancas que evocam a maquiagem de teatro. Para tudo emoldurar, e assim enquadrar nosso olhar, encontra-se uma faixa muito vermelha e uma mancha amarela onde a artista escreve exatamente o que entrega: “luz neon”. Mais uma vez as palavras duplicam a imagem, e têm assim um papel que parece ser mais estético do que semiótico.

A única pista de que aí temos uma narrativa vem, como temos aqui destacado, das tiras disposta acima e abaixo das obras. Elas indicam uma certa passagem do tempo, com a jaula aberta, a fera sendo solta e as pessoas observando tudo nesses espaços tão misteriosos como silenciosos. Quem sabe algo esteja, de fato, acontecendo em outro lugar. Afinal, essa é a magia do teatro – e da pintura também. Estará o ator fingindo? Quão ardilosa é a artista? Somos nós os malabaristas?

O certo é que algo permanece fora da cena pintada, e ela não só nos escapa, como nos faz falta. A tensão resta, então, retida do lado de fora da tela; quem sabe no mesmo espaço que momentaneamente ocupamos. Como observadores cúmplices.

Uma outra sequência de 11 trabalhos nos leva a percorrer salas, quartos e corredores. São todos ambientes internos. Vânia convida a entrar nesse universo, novamente onírico, com a introdução da palavra “Bem-vindo”. O ambiente é um tanto misterioso, com uma espécie de fonte ao centro. A interioridade parece funcionar como “Abrigo” diante do desconhecido que, em geral, ocorre no exterior; neste caso só visto por meio de janelas escuras. Todo o recinto é bastante vazio, com o vermelho predominando nessa série. Candelabros, árvores com suas folhas já caídas, escadas que não levam a lugar algum, pássaros fazem parte deste que se parece com um esconderijo. Mas esses são – e assim dizem as palavras – “tempos perigosos”, e a torcida é para que a moça de cabelos pretos permaneça reclusa, sem que “os brutos” a vejam. Não há exatamente final da história ou happy end. Mas se existir, neste caso ele parece mais otimista, com as telas finais sendo mais reluzentes nas cores e adornadas pelas palavras “horizonte” e “eterno”. Por sinal, a luz é agora mais laranja e brilhante; menos assustadora. Mesmo assim, não sabemos quem são os “brutos” e do que a protagonista deve ter medo. Ou, de novo, nós mesmos.

A síntese destas perguntas não respondidas pode ser encontrada em dois quadros maiores, e de fundo branco. Num deles, a protagonista que vira para a direita, pergunta: “de onde somos?”. Sendo que o homem da direita responde: “Continue voando”. Na verdade, e mais uma vez, não existe resposta fácil na obra de Vânia, assim só nos resta, sempre, seguir em frente.

Essa espécie de operação de despistamento ocorre em cada obra de Vânia Mignone. O ator voou? Será um homem ou uma mulher? A moça equilibrista tem medo por quê? Quem são as feras soltas no circo? Quais são os “brutos”? E por quê as palavras encerram-se em si mesmas?

Humpty Dumpty, famoso personagem de Lewis Carrol, em “Alice no país das maravilhas”, explicou à menina que o mais importante não são as respostas, mas as perguntas que fazemos.  E assim se comporta essa obra: ela nos introduz nas perguntas sem se preocupar em adiantar ou oferecer qualquer resposta.

O conjunto dos trabalhos da artista, convida a entrar, portanto, em um outro mundo; aquele povoado pela nossa própria subjetividade, nossos medos, nossas utopias escondidas, nossos desejos, as conquistas que queremos ver reconfirmadas, os tombos que levamos. Um mundo que se equilibra na nossa esperança que renasce a cada dia. Como uma pintura que cresce e toma rumos que pouco poderíamos adivinhar.

As figuras de Vânia passam muita segurança a despeito de se mostrarem um tanto frágeis. Além do mais, aparecem envoltas em situações de contemplação que não elidem um certo protagonismo. Essa é uma obra feminina e feminista, que não se conforma em destinar apenas às mulheres o protagonismo. Um olhar de uma mulher, situada, mas que vê o mundo a partir de uma lente plural e indiscriminada. Um trabalho que não expulsa a contradição, o erro, o engano; o incorpora numa série que elogia a incompletude. Uma obra feminina, mas que não se limita ao gênero, pois qualquer subjetividade pode ser individual na medida em que é universal. 

A obra de Vânia Mignone é assim: como uma “esperança equilibrista” que sabe que o “show de todo artista tem que continuar”.

 

“Tudo na vida tem seu lugar. Não tem muita explicação formal” 

Vivemos numa civilização que vai se perdendo em meio a um mar revolto de informações e imagens. Já Vânia Mignone é dona dessa arte sintética, sem excesso, que retrata um mundo onírico e que não procura por respostas. Pois não precisa delas. O que vemos não é a conclusão do espetáculo, mas uma fuga do palco. Não um fechamento, mas a abertura para outros universos subjetivos.

Com efeito, a obra de Vânia combina com sua forma de criar. A artista não faz esboço algum. Ademais, no decorrer do processo de criação vai destruindo e repintando, colando, de maneira a deixar “a briga registrada”. Ou seja, ao invés de “limpar a sujeira”, ela incorpora pequenas tensões, e a própria sinuosidade do trajeto.

Por isso, nos trabalhos dela, essas frequentes alterações de rota e de perspectiva, esses giros, guinadas e mudanças de direção, não são absorvidos enquanto erros. São como cicatrizes, que registram a história de cada obra, ou o trajeto percorrido (com idas e vindas) nas sequências criadas pela própria artista. Nada é imposto pois é somente oferecido.

Tudo na obra de Vânia comunica diretamente, sem subterfúgios, como uma peça de publicidade: uma pessoa, um objeto, um adereço, uma palavra, uma cor. Tudo é feito de forma a atrair o olhar, com os trabalhos se oferecendo de maneira muita generosa. Eles são accessíveis também ao privilegiar o contato delicado, sensível e direto. Afinal, diante de uma obra como essa, cada pessoa precisa e arregimenta sua temporalidade própria; seu percurso interno.

No entanto, e como temos visto, esse é só o início do processo. A partir daí, as relações vão se tornando muito mais intrincadas, imprevisíveis e difíceis. Figuras podem parecer tão estáticas como tensas. Textos anunciam, mas não entregam. Uma sequência não leva obrigatoriamente à outra. Por outro lado, as irregularidades dos trabalhos de tão visíveis os humanizam, valorizando a ideia da “incompletude, que se completa” com o nosso olhar.

Isso porque a arte de Vânia Mignone parece se “fazer fazendo”. Me explica ela que “conforme o trabalho cresce ele sempre vira outra coisa”. Às vezes a figura nasce como homem, mas se transforma numa mulher, alguns detalhes desimportantes viram centrais, assim como as palavras muitas vezes laterais se materializam enquanto argumentos, quando não se comportam como desafios ou tinta; cor.

“A obra de arte é simples”, Vânia conclui humilde. A sofisticação não tem a ver com o material que se emprega, mas parte de nosso próprio olhar. Afinal, o simples muitas vezes é o mais complexo, e a sofisticação retira seu lastro a partir de tudo que é mais básico.

Pois há muito de completude numa pintura expressamente feita para ser e restar incompleta. Segundo Vânia, se ela se propusesse a fazer esboços, sua arte não guardaria emoção. “Daria sono”, desabafa.  “Aquilo é processo”, explica ela apontando para uma obra; “é trabalho que foi tocado pela emoção. Não fico pensando no trabalho. Trata-se de um pensamento por camadas”.

A beleza dessa arte tem a ver com o jogo das cores, a partida com as palavras e com as figuras. Mas tem a ver, também, com esse projeto democrático, digamos assim, que não pretende convencer e nem tampouco tem a preocupação de, no limite, apenas agradar ou apaziguar. O importante, segundo ela, é se deixar perder nessa arte que pede pela decifração para não nos devorar.

Pergunto para a Vânia, logo na minha saída da galeria, quando é que um trabalho termina: “O trabalho pula para fora”. “Ele se separa de mim quando há uma energia que passou a existir na própria obra”. Entre sincera e humilde – na verdade os dois – a artista fala do mistério envolvido neste processo, e que faz com que a explicação venha difícil – afinal, ela é quase uma sensação interna e que, portanto, não encontra nas palavras uma elucidação fácil.

E é nessa hora, que a artista o entrega para o público, e aí começa outra história. Ela, de alguma maneira, se desapega do quadro, para dar vazão e espaço para uma nova empreitada. Uma outra energia. Já nós, ficamos totalmente imersos e imersas nessas histórias abertas, nessas narrativas cujo fim se despista e se converte em muitas possibilidades.

Fiquei pensando que talvez seja esse o motivo das obras de Vânia Mignone não trazerem assinatura ou a data de feitura na parte de frente dos trabalhos. No limite, assinar e datar significa colocar um fim. É achar que a arte está, de alguma forma, acabada; virou agora um monumento que pede pelo mesmo respeito que se tem dentro de uma catedral de séculos passados.

E quando isso ocorre, o silêncio não vem mais da dignidade que a obra enseja, e da contemplação que sua temporalidade interna nos impõe. Esse tipo de protocolo virou, então, tão somente uma forma de afastamento, quase burocrático, que se encontra distante e apartado do verdadeiro ritual que significa entrar numa sala de exposição desta artista, quando os expectadores são convidados a interagir com o silêncio. O das obras e o seu próprio.

Pois a arte de Vânia nunca acaba e traz sempre as marcas da sua “incompletude completa”. Repleta de si, mas aberta ao outro.

 

 

Lilia Moritz Schwarcz