ALBANO AFONSO . FORA DE REGISTRO
Contemplar, verbo transitivo direto, é gesto conectado ao desejo de internalizar os significados e os sentidos mais amplos de uma ocorrência, de uma paisagem, pessoa, objeto, gesto, ou ainda, de uma obra de arte. Sentidos mais amplos, pois quando um determinado referente nos seduz a ponto de o submetermos a um escrutínio visual mais detido, na verdade não se trata apenas da faculdade da visão que acionamos para esse instante de natureza alongada. Se estabelece nesse momento uma co-relação entre o eu e o outro, na qual outros sentidos são rapidamente convocados.
Contemplar, podemos inferir, é uma forma de perceber o alvo de nosso interesse além de sua aparência. É aventura na qual nossos sensores são convocados no intuito de obter uma supravisão capaz de investigar detida e suavemente os interstícios, as nuances, as frestas desse referente que nos magnetiza. É também, em boa medida, um olhar perceptivo dialógico, pois para desvelar os sentidos latentes do outro, ou de algo, obrigatoriamente estamos mirando também para dentro de nós, deixando que nosso humor, nosso intelecto e nosso inconsciente reajam livremente a essa fruição.
Logo, toda contemplação é também uma (super)visão que ocorre dos olhos para o exterior, mas também para o interior de nós. Quando esse circuito entra em funcionamento, estamos próximos de um estado meditativo.
A fotografia é a esfinge de uma contemplação. Monumento construído à golpes de luz em superfície fotossensível, com a incumbência de gerar o simulacro de uma contemplação que o fotógrafo entendeu que deveria ganhar a perenidade. Como afirma o pesquisador e fotógrafo Boris Kossoy, uma fotografia traz à tona não a realidade do momento do registro, mas uma segunda realidade, a realidade da superfície impressa em plano bidimensional, sujeita a ser orgânica e simbolicamente alterada na sua travessia temporal em direção ao infinito.
Logo, poderia um registro fotográfico fazer emergir em potência o êxtase contemplativo que lhe deu origem? Ou, poderia uma fotografia ser ela mesma o disparador desse enlevo, trocando a experiência do instante perdido pela contemplação do próprio suporte que a contém?
Tais pensamentos surgem em profusão quando observamos a inédita série fotográfica de Albano Afonso. Fora de Registro é criada por meio de estratégias técnicas e poéticas que findam por criar uma espécie de abalo sísmico na ilusão de estarmos vendo a coisa fotografada e não simplesmente uma imagem impressa numa superfície. A ideia da fotografia como uma janela que magicamente nos desloca do nosso tempo-espaço é refutada nessa proposta metalinguística que o artista propõe.
Sobrepondo imagens distintas feitas numa sequência, o artista as rearranja de modo que a representação do referente fique “fora de registro”, termo utilizado no jargão das gráficas, quando as lâminas das matrizes cromáticas que formam a imagem não estão alinhadas e geram um efeito borrado. Outras estratégias são utilizadas para criar diferentes perturbações nessas fotografias, que findam por desacomodá-las do intuito de mimetizar o que a câmera teria registrado passivamente.
Ao submeter as imagens a esse processo, Albano Afonso parece nos dizer, emulando René Magritte: - Isso não é um buquê de flores, é uma fotografia. Ao nos impedir o devaneio, a ilusão que a mimese fotográfica proporciona, o artista descarna o jogo especular do sistema de representação para nos deixar ali, diante dessas fotografias, que propositalmente falham no seu projeto de serem uma miragem.
Uma falha pode ser também o disparador de uma contemplação. Se não é mais o buquê de flores, a obra de arte ou uma constelação, as esfinges que me seduzem nessas imagens, o que me mantém então conectado a elas?
Albano nos leva a olhar fotografias como se elas fossem… quase fotografias. Destituídas do jogo mimético ilusório, de sua potência de miragem que nos conduz a tempos e espaços pretéritos, essas fotografias não pretendem nos conduzir para um lugar que está além delas. Não se trata mais de um suporte, tampouco de um passaporte.
A contemplação agora se dá na materialidade da própria cópia fotográfica, que em Fora de Registro, talvez deva ser absorvida como imagens com um desejo irrefreável de serem um evento escultórico. O que resta diante de nós, após as estratégias criadas pelo artista, não é mais a promessa fabular da fotografia, mas sua estrutura; o nosso centro de especulação não está mais em algum lugar além dela, mas é ela própria.
Nessa operação, a imagem deixa de ser promessa de algo, para tornar-se uma fratura exposta, uma relíquia. Contemplamos então a falha de uma promessa e assim, finalmente somos levados a enxergar o arcabouço, os elementos constitutivos de uma imagem colapsada, não uma imagem em sua integridade.
Fora de Registro marca o retorno triunfal de Albano Afonso às entranhas do fotográfico, em seu abnegado projeto de especular acerca do universo das imagens técnicas e seus efeitos na nossa percepção. Em sua trajetória, o artista já investigou o binômio imagem-imaginação por vários aspectos: a projeção, o movimento, a gênese que forma a imagem, o brilho que revela e cega, etc. Agora o artista investe, apaixonadamente, na possibilidade de contemplarmos a linguagem bruta, o fotográfico num estado de suspensão e de auto-análise sobre o seu lugar num mundo dominado por algoritmos assertivos que nos desnorteiam a ponto de realidades e fábulas se sobreporem para o bem e para o mal, sem deixar vestígios por onde possamos entender de onde e porque surgem diante de nós. Há claramente um viés político oportuno quando o artista nos alerta sobre o efeito hipnótico da natureza da imagem fotográfica.
Desativar a ilusão, também é contribuir para uma visão crítica e menos dogmática. Albano desvela essa possibilidade nos entregando a fotografia como um corpo soberano que vibra intensamente diante de nossos olhos. Fotografias que começam e terminam nelas mesmas. Monumentos que abdicaram de seus falsos heróis.
Eder Chiodetto