VÂNIA MIGNONE: DE TUDO SE FAZ CANÇÃO . Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, Brasil . CURADORIA DE PRISCYLA GOMES: Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, BRASIL . CURADORIA DE PISCYLA GOMES

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Apresentação
Em uma tarde de 1964, uma sessão de cinema no Cine Tupi apresentou ao cantor Milton Nascimento o filme Jules et Jim, do precursor da Nouvelle Vague francesa François Truffaut. Arrebatado pela película a ponto de assistir a repetidas sessões naquele mesmo dia, Bituca sentou logo depois para compor pela primeira vez. Dessa possibilidade de tradução nasceu o Clube da Esquina, um dos movimentos responsáveis pela renovação da música popular brasileira na metade do século XX.
Tomado por aquelas imagens e por essa experiência, Bituca fez do cinema canção. A síntese sinérgica, explorada musicalmente pelo grupo, alia o cancioneiro popular, a bossa nova, a viola caipira, o rock progressivo e o jazz. Da fusão de universos improváveis surgiu o encontro entre a cultura barroca mineira e a modernidade, e a indiscernibilidade entre popular e erudito.
Desse poder de uma obra em adentrar e contagiar aquele que a experiencia, a artista paulista Vânia Mignone se lançou a fazer de sua pintura canção. Construiu para si uma estrada, incorporandoa música popular brasileira ao seu processo criativo cotidianode ateliê.
Em um universo peculiar, a artista também faz da síntese sinérgica de campos plurais os compassos para suas canções. Seu vasto léxico – que abrange o cinema, os quadrinhos, a literatura de cordel e a propaganda – incorpora elementos fundamentais dessas referências, dentre eles, a coesa relação entre imagem e palavra. Dessa relação derivam versos e passagens que soam ora como suspiro, ora como narrativas lacunares em que anseios e sonhos não envelhecem. São enredos, pistas, palavras espessas, expres- sos com traços que evocam a xilogravura com uma estética própria.
Pensar sua relação com a gravura em madeira não é somente encontrar caminhos para a origem da sua iconografia, mas também desvendar percursos compositivos. Seus primeiros experimentos, ainda no início da carreira, influenciaram a presença de contor- nos definidos das figuras em suas pinturas, o apreço pelos planos contrastados de cores chapadas e o uso do MDF como suporte. Do escavar de suas linhas com a goiva à exploração do contraste entre o pigmento acrílico e a madeira, Vânia expandiu seus processos, incorporou a colagem, trouxe a produção modular para o pensa- mento compositivo de suas telas e transitou em diferentes escalas.
O conjunto de obras apresentado nesta retrospectiva resgata os percursos da artista nos mais diferentes suportes: desenhos, colagens, ilustrações para obras literárias, capas de discos, gravu- ras e pinturas. São obras que se aproximam pela recorrência de temas, elementos e sensações, cuja origem ainda é lacunar para a artista. As chamas sem pavios das narrativas exploradas por Vânia destacam-se pelo modo como ela articula desde questões prosai- cas até aspectos latentes da cultura e da política brasileiras.
A mostra recebe o público com um grande mural dedicado ao recente episódio da tragédia humanitária Yanomami em territó- rio amazônico. A vivacidade cromática e a escala não nos deixam esquecer que fazer canção, embora seja uma importante forma de especular sobre os encontros e desencontros da vida, é também refletir sobre o silêncio e suas consequências, sobre como narrar o desmedido e o intragável. Em meio a tantos gases lacrimogênios, os trabalhos de distintas épocas dessa retrospectiva nos convidam a fabularmos criando nossa própria canção, uma viagem de venta- nia pelas estradas trilhadas por Vânia até aqui.
 
Priscyla Gomes