ROBERTO MAGALHÃES . CURADORIA DE FELIPE SCOVINO: CURADORIA DE FELIPE SCOVINO

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Apresentação

Roberto Magalhães

 

A exposição é um sobrevoo sobre os cerca de 60 anos de trabalho de Roberto Magalhães. Sua poética se caracteriza por uma distorção do real, ou melhor dizendo, faz com que através dela percebamos o quão grotesca e paradoxalmente hilária pode ser a realidade. As formas de seus personagens, retratos, autorretratos, objetos e paisagens apresentam-se dissolvidos, estendidos, diminutos, divertidos e notoriamente fora da ordem. São cenas e personas ficcionais mas que constroem um forte laço associativo com o real. Aliás, ficção e realidade não encontram distinções muito evidentes na sua obra, pois se misturam e se complementam, como se uma se alimentasse da outra.

 

Sua trajetória começa em 1961 quando frequenta por três meses, como aluno livre, cursos da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA). Foi lá que Roberto teve contato com o professor e artista Adir Botelho e com a xilogravura, técnica que resultou em um novo caminho para a sua produção. Em 1962, realiza sua primeira exposição, na Galeria Macunaíma. E a partir daí recebe prêmios e participa de exposições-chaves na história da arte brasileira, como Opinião 65 (1965) e Nova Objetividade Brasileira (1967). Ainda jovem, participa da IV Bienal de Paris e da VIII Bienal de São Paulo, além de várias mostras coletivas no exterior. Suas obras nesse período, como as xilogravuras aqui apresentadas, caracterizam-se por uma violência gráfica, com a presença cada vez mais substancial de seres monstruosos em um ambiente taciturno. Reflexo da tensão que se vivia naqueles tempos.

 

Em 1967, Roberto segue para Paris, como resultado de prêmio de viagem, onde passa 1 ano. Quando retorna ao Brasil encontra um país, pós-promulgação do AI-5, ainda mais turbulento, violento e repressor. Passa a se dedicar com afinco aos estudos de ocultismo, teosofia e, sobretudo, a aproximação ao budismo. No bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, ajuda a construir o Centro de Meditação da Sociedade Budista do Brasil e reside nele. Doa os seus bens materiais, interrompe a atividade artística e fica seis anos sem expor. Em outubro de 1975 redige o texto “Algumas considerações sobre a arte do futuro”. Coloca-se como um“artista místico”, e em uma entrevista, argumenta que sua produção naquele momento “não é arte no sentido tradicional da palavra”. E continua: “Apenas uso habilidades que tenho para representar no desenho as coisas espirituais. Pois a forma e a cor da maneira tradicional com que são usadas na arte para mim perderam o significado”. Nesse momento, começamos a observar em seu trabalho, com cada vez mais intensidade, a presença de símbolos, como talismãs, assim como a escrita de antigos tratados médicos alternativos, muitas vezes em latim.

 

A exposição é dividida por zonas de interesse que acompanham o artista desde o início da sua trajetória: o rosto como espaço da disfunção; o mascaramento; o misticismo (e não exatamente o surrealismo); máquinas imaginárias e suas dinâmicas absurdas; e, a arquitetura mole.

 

Ministro do Tempo (1976) e Ninguém (2008) são obras representativas da ideia de disfunção. Na primeira os detalhes faciais do rosto de um homem foram deslocados em 90o, corroborando uma atmosfera que se situa no balanço entre a estranheza e a comicidade. Em Ninguém, o perfil do rosto de um homem apresenta uma face sem os olhos e sobrancelhas. É a revelação de um estado de cegueira. Comentar sobre a disfunção – quando, por exemplo, os olhos não nos informam mais com nitidez o que está diante de nós – é também alegoricamente dissertar sobre tempos de violência, repressão e medo.

Cidade do futuro (2017) é da família da arquitetura mole. O que é tragédia – prédios se contorcendo - ganha ares de cartoon, de um mundo onde ninguém se machuca, morre ou é ferido. As edificações podem balançar mas não caem. Além disso, os transeuntes passeiam pela cidade mole sem se preocupar. A incoerência é prática rotineira para quem vive nas cidades grandes. Acabamos por nos acostumar ao diferente (que se alinha ao irreal ou ficcional) mesmo sem nos darmos conta.

 

Invariavelmente Roberto faz uso da alegoria de um corpo partilhado. O rosto formado por partes que se configuram com um aspecto de monstruosidade em Homem estupefato com o caos do mundo (2017) revela um tom de indeterminação sobre quem seria essa figura. Nada é revelado por inteiro e o que se faz presente é uma atmosfera de inquietação e euforia. Abstração andante (2018) evoca o corpo de uma criatura imaginária constituída por retalhos. A falta de um corpo inteiriço é o indicativo para um evento traumático, que, no caso da sua obra, é tratado via uma linguagem repleta de humor ácido.

 

As obras mais recentes de Roberto têm se direcionado para um universo fantástico e maquínico. Em algumas, percebe-se a escolha por um ambiente industrial, com formas soltas no espaço, criando ritmos próprios, associando o caos e o aleatório. Essa falta de chão, a escolha em deixar as formas flutuando como se tivessem vida própria, associando o ambiente da máquina a um organismo, é uma prática que tem sido operada pelo artista nos últimos anos.

 

Sua produção mais recente não se atém apenas ao tema da abstração. Animais mutantes, arquiteturas fantásticas e objetos sem utilidade têm aparecido com frequência assim como aqueles ligados ao misticismo como em O passado não volta (2022). Já numa série de nanquins recentes, o artista parece voltar ao tema das suas esculturas criadas em meados dos anos 1960, como o grande revólver em madeira apresentado em Nova Objetividade Brasileira. Máquina fragmentadora (2013) e Estrutura simbólica (2012) transmitem uma sensação bélica e catastrófica, por mais que o direcionamento dessas obras seja para o campo do lúdico. É difícil olhar para esses desenhos que tendem à aniquilação e não pensar nas agruras do contemporâneo.

 

Roberto construiu um lugar autônomo na arte brasileira, produzindo à revelia da espetacularização e de escolas que demarcassem um estilo para o seu trabalho. O riso – matéria de sua obra – se converte em deboche, muitas vezes de si mesmo, como vemos em uma larga produção de autorretratos. Se nos anos 1960 o riso era um poderoso mecanismo de reflexão sobre uma sociedade que vivia aterrorizada, nos anos 80, quando ensaiávamos uma tentativa de democracia, o riso continuava sendo uma arma de conscientização. Aliás, qualquer comparação dessa circunstância com o tempo presente é procedente. A obra, e a galhofa, de Roberto circula, portanto, nessa corda bamba entre a tragédia e o riso, a violência e o deboche.

 

Felipe Scovino