VALDIRLEI DIAS NUNES: PINTURAS
(Observando as pinturas de Valdirlei Dias Nunes)
Essas coisas são tão difíceis de explicar. A calma e o silêncio em meio dessas formas. Linhas e espaços pretos. E, em um momento, é como se houvessem começado a puxar uma cortina. Apagaram as luzes, mas as grades seguem luminosas. Talvez um pequeno espaço de tempo. Justo quando chega a resposta de uma pergunta consternada. O caixilho como espaço onde o drama se dá. Bastões na mão de quem? Apenas se discerne um caminho claro e simples. Essa calma e esse silêncio de elementos que já vimos antes. Imóveis. Elementos sem rastro de seu proprietário ou autor. Talvez pela simplicidade era de se perguntar porque despertam cismas horas a fio. Concedem pequenas pausas. Me recordam segredos, mas isso é um detalhe evidente. Tão reais como as grades escondidas entre as dobras dessas ficções que emergem durante longas pausas tabaquísticas da janela. Mergulhado, fechado sobre mim a escotilha, as pinturas parecem refúgio. Sentimental? Pois é. Se não for isso, talvez seja a companhia valorosa de um desejo atendido. A estranha vontade de saber o que se está fazendo repetidamente e, ao entendê-lo, dizê-lo em formas que atingem o claro paroxismo de sua mente. Formas que aproveitam a luz e a frequência lunar já que não adormecem facilmente ou não fazem questão de adormecer. O sono já não encontra lugar nessa realidade. Essas coisas são tão difíceis de explicar, mas tenho explicações a dar. Seguir essas formas com o olhar, tomar mentalmente os seus lugares fazem-me parar e imóvel poderia perguntar-me o quê as ilumina. Pergunto isso sem saber o que responder, mas tento isso sem saber o que estou tentando. Indiciemos as palavras ou as formas pintadas diante de mim? Não seriam mais ocas do que o que poderiam carregar em si. Como tudo isso seria falso? São, sim, símbolos universais. Nunca me deparei com nada parecido? Talvez ao me içar para dentro desse caixilho de objetos seja o tempo de sentir, mais que explicar. Revolver um pouco nessas coisas, apartando uma da outra, aproximando-as a mim, para vê-las melhor. Quem as possui? Estão dentro de mim? Esferas, cilindros, bastões. Os bastões que são os cilindros. Não me engano ao acreditar que posso possuí-los. Afinal de contas, sem olhá-los os vejo. Mas queria me certificar se são as mesmas bengalas que me sugerem tantas mensagens. Instrumento este de madeira para o sentido combalido. Fiz bem em assegurar-me se a imagem desses objetos no detalhe era a mesma no conjunto. Por acaso uma espécie de verdade se manifesta possível. Será uma espécie de obsessão? Segundo o que vejo, é como se uma bengala me visitasse. Iluminada no meio da noite. Para tê-la perto de mim durante a escuridão? Pertencia ao canto como aquela esfera? Tudo isso não passa de um segredo. Arcano, bruma, abismo. Há como se pode ver uma economia de elementos, mas um excesso de circunstâncias. Talvez aí é onde espreita a reverberação dessas formas tão variadas nas quais o imutável permanece em trânsito. Um ponto do espaço que contém todos os pontos. A bengala afinal de contas não seria arma mágica daquele peregrino que percorre os campos? Sob o céu noturno? Um instrumento para desviar as energias perniciosas? Não me decido. Observo longamente. Entre mim e essas pinturas, esculturas, ilusões (talvez naturezas-mortas que pela austeridade e sobriedade poderiam ser interpretadas em chave mística e ascética) há uma vidraça: o caixilho. Me convida a respirar em cima, mas não ouso amassar meu nariz na superfície. Vejo na bengala uma presença. Mas se é presença, por vezes, ela aparece atada à outra. Às vezes, se separam, não se encontram. Aliás, quero de uma vez por todas entender como tais seres são possíveis: juntos ou separados, apesar de tudo. Porque nem tudo está dito entre eles. Talvez seja desejo de dizer mais uma vez. Tentar só mais uma vezinha. Mas, seja dito entre parênteses, essa separação ocorre quieta, taciturna. Não aparece como impaciência. Ou talvez a escuridão tivesse vencido e a coberto. Já não se via. Esse escuro invencível. E no seu fundo havia silêncio das coisas que não se movem nunca, nem se dependesse dessas esferas, cilindros, bastões. Desses bastões que são os cilindros. Silenciosos, sobre fundo preto, nos seus lugares para sempre. Por que não estariam separando o lugar onde estou daquele que está coberto por essa noite do lado de fora? Não seriam janelas para uma noite que não me deixa entrever nada? Não há nem luzes esparsas. Vejo, em pé diante desses caixilhos, as fronteiras de onde brotam o silêncio e a noite. Estão longe de mim e em mim. Talvez o que queira dizer seja isso. Quero dizer que é o anoitecer. Sim. Talvez o mas escuro de que posso lembrar. Sim, é uma escuridão total. Não vejo nada além do caixilho e das esferas, dos cilindros, dos bastões. Dos bastões que são os cilindros. É como se estivessem à borda de um abismo. E isso me surpreende, me faz pensar em algo novamente. Em pinturas passadas, aquelas feitas nos anos 90. Conheço essas formas por pinturas anteriores. Talvez não há cortina que começa a cobrir a grade. Talvez seja simplesmente uma quadrícula que para bruscamente, repentinamente ao que parece. Mas, o caixilho me faz pensar o que as ilumina por dentro, nesse escuro crescente. Escuridão flanqueada por madeira. E me faz pensar também nos leves reflexos do óleo sobre a tela de polyester. Difícil não pensar como tudo não mergulha, não direi na sombra, tampouco penumbra, mas nesse manto de carbono. Há um jogo entre essa cor e o branco que aparece às vezes. Esse branco mostra a luz daqui de dentro. Mas essa luz também tem suas alternâncias, esse branco, que é essa luz daqui de dentro. Ela se vê aqui e ali, mas deixa de aparecer. E parece com frequência que estou em sua cabeça. Que de vez em quando vejo só janela, via, para o exterior, que é noite. E em outros momentos vejo a parede, onde está situada esta janela ou abertura ao exterior. Parede branca e noite preta. Não, não é possível que seja dessa maneira, pelo modo que está configurado o caixilho. Somente em meus sonhos, em metafísica surrealista ou mágica. Sim. Mas antes de abordar outro assunto, fiquei ali com os olhos pendurados nas pinturas que tinha em frente. Estava gostando de demorar os olhos naqueles lugares mágicos, ia dizer representados. Mas acho que isso é uma questão da hora em que ele pinta. Até mesmo porque essa noite não é a de qualquer céu. É um particular que envolve a todos nós e que não se beneficia do brilho dos astros. Esse lugar arquitetônico contido, humano, ele me disse. Ou será que pensei nele me dizendo isso? Ele poderia ter me dito isso. Por sinal, agora ao olhar, penso nesse caixilho como objeto escultórico ao invés de janela. Então, nessa nova inspeção, o que seria isso que vejo em suas paredes laterais? Nelas se projetam em cada lado, em ângulos diferentes, cilindros de madeira, como se fossem prolongações do próprio caixilho. Agora isso me parece um enigma. Quero dizer, achar que vi com clareza é dizer muito. Parecem devaneios absurdos os que pensei. Sonhadoramente. Imaginem, eu que aguardei ali, em frente às pinturas, enquanto pensava que poderia entender esse caixilho de fundo preto com duas prolongações cilíndricas de suas laterais. Me iludia. Enfim, há algo de simples e belo e familiar e estranho e mágico. E tenho que admitir que esta sensação me acomete de longa data. A sensação provocada por uma dessas pinturas. Teria que escavar um pouco mais nas razões que me levam a pensar isso. Mas sinto que ao tê-las em uma mão se escorrem entre meus dedos. Talvez seja a tranquilidade que incitam. Daquela sensação entre dormida que mergulhamos com parte de nossos corpos no que afaga. Eu a reconheço e a compreendo e sinto tantas sensações que valeria a pena dizê-las mesmo que pareça pouco organizado, com ausência de estrutura teleológica ou sistema interpretativo definitivo. Dizer por exemplo que a paleta é a mesma paleta que ele vem trabalhando, preto, branco, amarelo-ocre e ele adicionaria ao dizer: “e uma sombra”. Claro que o dourado também aparece. Mas quando ele o pinta, em uma configuração bastante simplista, ele às vezes até chama essa representação de barra dourada, de um dourado que não é uma representação tão fiel assim de como entendemos o que seria uma coisa dourada, mas na sua cabeça significa entre um marrom, um dourado e assim ficam as coisas para ele. Mas, de qualquer modo, sem distrações, ele trabalha com cinco tubos de tinta acrílica e cinco outros de tinta a óleo. Reacomodo o olhar e noto que nesta exposição quase todos os trabalhos são acrílicos e óleo. O óleo lhe permite pintar esses objetos de acordo com sua semântica pictórica habitual com velaturas e transições muito mais suaves que o acrílico. Então, é bem disso que se trata, dessa paleta, nunca se tratou de outra coisa, que me recorde, sempre foi uma paleta econômica e que tem sido usada já a muito tempo. No começo dos anos 90, ele começou com essas pinturas pequenininhas e fez durante muito tempo, bem no começo, aquelas de fundo preto. Mas dizer do que tratam exatamente, digamos assim, sinto que seria de todo impraticável, no presente momento. Depois elas evoluíram, mudaram, se manifestaram com o fundo branco, aumentaram de tamanho. Não é necessário vir tomar suas medidas, nunca aumentou tanto assim, porque o seu tamanho sempre foi pequeno. Inclusive quando começou, justo quando chegou no mundo das artes ressacoso com a produção pictórica, lá no final dos anos 80, que pariu grandes pinturas multicoloridas. Na época, o seu trabalho já tinha essa dimensão pequena, que não era tão comum, seja dito de passagem, escolher esse meio pictórico e desenvolver uma produção tão grande sobre uma pequena superfície. À primeira vista, podem parecer superfícies sem rastros de um passado, contudo estão repletas dele. Talvez possamos imaginar que será assim até o fim. Acredito nisso. Sinto isso. O tempo passa e parece que tudo, que esses objetos permanecem incólumes. Agora quanto à cor, mesmo que já tenha dito algo, prefiro repetir, pois a cor é essencial, o preto, tudo o que se pode dizer é que ele começou a fazer pinturinhas de fundo preto com as grades rasgadas, sim, acredito que tenha sido essa palavra a que utilizou, rasgadas. De repente a pintura fustiga, não? Porque talvez por trás de um conjunto pictórico intimista, que alude ao passado de algum modo, exista um relato pessoal. Lá estão elas tranquilas, pousadas sobre as paredes, não deixando transparecer nada que se passa em seus interiores, como se estivessem de costas para quem as observa. Vejo seus occipícios. Sinto isso. Mas é sobretudo o fundo preto que é memorioso, no sentido de que abraça e se soma àqueles elementos geométricos. Claro, esses elementos já apareceram no passado, afinal de contas, estamos falando dele. Mas agora eles aparecem de modo diferente. No passado, lembrem-se que as suas pinturas apresentavam pedestais sobre os quais podiam-se ver objetos geométricos. Não nos esqueçamos que seus liames fazem parte do auge das contaminações de HIV. Elas também trataram disso. E tento buscar conexões nas novas pinturas com esse passado. A bengala continua no meu campo de visão, talvez seja por medo da queda. Mas talvez esteja errado. Porque é este com efeito o que faz essa bengala, me faz errar e me ajuda a sonhar. Agora, o que dizer desses pequenos cilindros de madeira? Digam o que disserem, não é possível neles tampouco equacionar sistema interpretativo definitivo. E talvez porventura pensariam aqueles que já entenderam o que nem ao menos tenta ser confluencionista que eu não tenha ido longe demais, pois em meio desses bastõezinhos há de fato muitas asseverações a serem feitas, para começar que não são cavilhas ou qualquer outro tipo de peça usada para unir ou apoiar outras. Nem os bastões puderam permanecer unidos. Bom, em um momento estão. Em outro já não. Como aqueles que caem em meio ao fundo preto. Ou talvez estejam situados sobre o fundo de um lugar escuro. Estaria claro que os abalos que padeceram a mente do artista subsistem acalmadas nas pinturas? Observando-as agora, não mais isoladamente, mas em relação uma com a outra, continuam não deixando entrever nada. Mas parece que elas tem uma simbologia. Mas ele não a busca. Será que o que vejo é o paroxismo de um passado que se inflama em amarelo-ocre? Um enigma? Ou vários? Seja como for, nem o próprio autor sabe precisar ou decifrar o que lhe apresenta em chave de mistério. E isso se prolonga naturalmente por meio de suas tautológicas descrições. Talvez seja isso. O mais natural e direto. Sem rodeios. É assim que ele trabalha pelo menos. Sem um horário fixo ou rotina de atelier. Direto, mas enviesado, até no momento de selecionar as obras expostas. Ele nunca usa exatamente o que está produzindo, sempre pensa em algo adicional. O que vejo já vinha sendo produzido desde a pandemia, na verdade, ele tinha começado um pouco antes. Talvez isso tenha começado lá atrás, nos anos 90, quando começou a pintar obras de pequenas dimensões e fundos pretos. Mas sei que para ele são outra coisa, embora estabeleçam uma relação muito forte com aquilo, com aquele passado. Mas talvez na sua cabeça, ele gostaria que não houvesse significado algum, ainda que eles detenham de inúmeros por retornarem às formas mais figurativas que há muitos anos ele não usava, como a bengala. Mas insisto em não saber a real razão desse retorno, dessa queda no passado, desse deslize à escuridão. Observo a bengala misturada à grade e penso nessa grade como real, como ele gosta de pensá-la. Porque é disso que se trata, não é? Entender o que se passa em sua cabeça. E na sua cabeça tudo isso é representação. Psico-representação? Essas coisas são tão difíceis de explicar. O que vejo já vinha sendo produzido desde a pandemia, quando ele ficou bem mexido, olhando o pôr do sol, em meio àquela silenciosa morte pessoal: simbólica e real. O que vejo tem relação com a morte, sim, mas também com a separação, com a solidão, com o isolamento e muitos outros sentimentos que ele possa estar sentindo. Mas não sei ao certo. O que sei é que a bengala reapareceu no ano passado. E não demoram de chegar lembranças de sua primeira exposição na Triângulo, onde se podia ver uma pintura de bengalas, momento quando Basualdo escreveu um texto que as invocava. Mas, continuando no território mnemónico, em meio a essa escuridão, mal vejo a janela, por sinal, para que serviria trazer até aqui os objetos do passado (que em alguns momentos emergem enganchados uns aos outros como costuma a ocorrer com o que se abandona ou se esquece)? Por quê temê-lo? Isso não invocaria, em apoio a essa maneira de ver, diversas considerações que basicamente se enraízam na relatividade da incidência do tempo sobre sua vida? Em qualquer caso, a bengala apareceu, ela deve dizer alguma coisa já que as pinturas guardam uma energia, falam de um momento histórico. Afinal, são janelas, é o que quero que elas sejam. Há sempre algo do outro lado. Vi primeiro a noite. E isso me surpreendeu. Mas talvez tenha sido por lembrar de obras passadas, daquela caixa toda roída, ou de momentos mencionados por ele em que muitos ao seu redor estavam partindo. Então de algum modo, o passado ficou marcado nas pinturas? Nas psico-referencialidades? Mas como discernir uma vida em meio a uma obra que se comunica dessa maneira?
(Eis que a janela da frente se ilumina: ele procura, tenta entender sua obra, busca entender por onde caminha trotando em uma só sombra em meio à noite).
Tiago de Abreu Pinto, Setembro de 2022.